Descartabilidade e pães

Ainda me recordo de, quando menina, ia comprar pão na padaria da esquina e seu Joãozinho embrulhava os pães na maior calma deste mundo e, depois, passava em volta do pacote e em formato de cruz o barbante (cordão). Uma solenidade aquele momento. O pão torradinho e quentinho. Aí a gente começava a sonhar a manteiga derretendo naquela maravilha. Minha predileção era e ainda é pelos pães bem moreninhos que eu não sou de comer cru. E você, leitor, deixe de pensar bobagem, eu falei cru.

Os bicos do pão eram mais escuros e durinhos (os bicos do pão, lá vem você outra vez pensando coisas). Tenho observado que os pães não têm mais bicos, que pena! Enfim, a manteiga derretendo e descendo pelos dedos. Lambíamos os dedos e nunca nos fartávamos daquela delícia. Igualmente delicioso era o pão doce. Descobri que nem tem mais padeiros que conheçam o pão doce, aquele vermelho e coberto de açúcar cristal.

Minha intenção era falar de descartabilidade e nem sei como misturei o tema com os pães. Deve ser porque sou assim, meio arrodeadeira. De fato, os pães têm a ver com a descartabilidade. Tudo nestes dias nos quais se respira modernidade e tecnologia é absolutamente descartável, dos pães até o amor.

Gosto de acompanhar o progresso, herdei isto de meu pai. Só que ele exagerava e se desfazia de mobília antiga em madeira de lei para seguir as tendências futuristas até que entrou pela fórmica. Você se lembra disto? Tudo bonito tinha que ser em fórmica. Gostava dos armários de aço e das radiolas modernas. Veja só você, o Word não reconhece a palavra radiola, ai ai.

Então e então, foram-se as radiolas, os discos de vinil, os bailes em ambientes fechados (agora tudo acontece na areia da praia). Foram-se os sapatos e os vestidos que a gente gostava tanto e reservava para ocasiões especiais; foram-se tantas e tantas coisas. Ficaram os flashes de filmes em nossas mentes, o saudosismo, o pieguismo.

Foi nos acusando de piegas que ganhou espaço este tipo de sociedade onde nem recordações têm direito a um raio de sol, quanto mais a espaço. Só uns teimosos tentam reprisar o filme antigo que o vento levou.

A gente amava o primeiro sutiã, o primeiro beijo, o primeiro namorado e o único marido. Acabou, tudo passa, tudo se esfumaça. Trocamos tudo, das cortinas aos carros; dos sutiãs aos silicones; do flerte ao ficante. Ei, não estou criticando. Podem trocar tudo, mas aguentem também as consequências. E nem venham com essa história de carência, de depressão e de abandono. Você também é descartável.

A sociedade capitalista e consumista nos fez à sua imagem e semelhança. Somos todos apenas objeto de prazer do lucro, da industrialização e da tecnologia jobsiana. Deixo bem assentado que admiro o Steve e seu legado. Aí o leitor haverá de perguntar: afinal de que lado você está? Do meu, é claro. E o meu é o da ponderação, o da admiração pelo novo, mas não ao alto preço da negação de minha história. Este momento é também história e só podemos constatar que chegou a vez da corrida para coisa alguma. Descartamo-nos de nós mesmos e das horas em busca do ter e perdemos a natureza, a alegria e a vida. O pior: este cenário é irreversível.

taniameneses
Enviado por taniameneses em 04/11/2011
Reeditado em 04/11/2011
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