Pingo

Fechou os olhos e conseguiu se ver novamente em pé sobre a poltrona, apoiado na janela, olhando o movimento lá embaixo. Parece monótono? Já fôra até pior. Antes, ficava sentado no canto da sala, às vezes na cozinha, durante horas, mirando as paredes. Decorou a posição de todos os quadros. Um, retratava uma coisa com esferas, pessoas nas janelas da coisa pareciam se divertir muito. Pessoas riem quando se diverte....

Está certo que quando chegou não sabia nada de nada. Nem o que era janela. Mas depois de um tempo, descobriu que as aberturas na parede eram as tais janelas, e aprendeu até mesmo seu significado: Janelas são meios que se tem de viver o que não podemos viver onde estamos. Parece triste? Quando se está preso, realmente é assim que sentimos.

Mas nem tudo era tédio: Aprendeu tanta coisa. Que existe gente de verdade, que podiam ser tocadas e gente de mentira, que aparecia e desaparecia em uma coisa chamada televisão. Quantas vezes ansiou por saber como fazê-las aparecer nas longas horas quando as pessoas de verdade não estavam. Restava apenas a estrada que ligava a cozinha à sala, e de lá para cá, horas sem fim, com paradas regulares para um soninho.

Mas as novidades são trazidas pelo tempo, dia que sucede em noite que sucede em dia, e uma manhã, descobriu que subindo na poltrona, alcançava a janela. O mundo se transformou. Conseguiu entender muito do que se passa lá fora. Árvores, ruas, prédios, carros, gente dentro dos carros. Aprendeu nomes, entendeu o sol, entendeu a chuva, entendeu as nuvens, até compreendeu como elas chegam e se tornam densas antes de chorarem copiosamente sobre tudo.

Durante muito tempo aquele mundo novo era toda a sua alegria. Esquecia de comer, esquecia de dormir, já não corria da sala para a cozinha, entediado.

Mas...

Tudo que se repete, enjoa. Acostumamos e não damos mais valor algum. Lá vem um carro, agora outro... Mais um. Vai chover? Não, ventou e espalhou as nuvens. Sol novamente. As folhas estão caindo, e balançam, balançam, balançam... Um bocejo, mais um bocejo...Ainda outro...

Parecia que essa seria toda a sua existência. Um dia, pararia de se mover, não teria mais a consciência do em torno, de si próprio, de mais nada... Assim como uma máquina que desliga. Viver é sentir tudo que se pode no breve tempo do funcionamento da máquina e o grande paradoxo é que embora pareça longo, esse tempo é muito, muito curto.

Mas a vida pode mudar assim em um estalo. E muda mesmo! Por isso devemos sempre ficar atentos. Você, por exemplo... Está atento que neste exato momento, pode estar acontecendo algo que se bem aproveitado, pode mudar sua vida para sempre?

Um dia amanheceu com tosse, uma estranha tosse que fez com que uma das pessoas da casa se preocupasse a ponto de levá-lo a uma consulta. Já tinha passado por isso algumas vezes, era sempre a mesma coisa. Alguém o levava até uma loja perto de casa, esperava, era apalpado e logo, voltava para casa. Sabia como era, memorizara cada movimento. A hora de sair de casa, contido pelo seu carcereiro, atravessar a rua, quando os carros paravam, a breve caminhada, a entrada na loja, e o momento que por alguns minutos ficava solto de suas amarras. Mentiria se dissesse que pensou antes, planejou a ação, afinal, tempo teve, não teve foi a idéia. Não... Foi um impulso mesmo, assim, do nada. Ao se ver livre, correu na direção da porta, surdo aos gritos de pega, pega... Atravessou sem olhar a pista contrária àquela que tinha atravessado antes, e outra, e outra, e outra... Correu muito, como se a estrada da cozinha para a sala tivesse se multiplicado por mil, dois mil, três mil... Parou muito tempo depois, morto de sede. Deparou-se com uma rua diferente, onde corria água em lugar de carros, parecido com a paisagem de um dos quadros na parede da casa, não foi difícil se fartar, antes de voltar a correr, agora, bem menos afoito e muito mais feliz. Pela primeira vez desde que nascera exercendo realmente sua verdadeira natureza: A de vira-lata!

Regina Racco