Hoje, matei A barata
Hoje, impulsivamente, matei uma barata. Saí pela sala, com um chinelo na mão. Ela corria muito mais rápido do que eu. Então, covardemente, utilizei o veneno em spray.
Vi que ela ficou desorientada, mesmo assim, conseguiu se esconder de mim. Então, pensei que morreria por ali mesmo.
Fiquei totalmente encabulada quando percebi que ela, a barata, resolveu morrer lá fora. Sem que eu visse, ela conseguiu sair da minha sala e escolheu dar o último suspiro na varanda.
Ela não se permitiu morrer dentro da casa de seu algoz. Aquilo muito me incomodou e fiquei pensando que ela, a barata, não era uma criatura desimportante. Aliás, muito mais célebre do que eu. Já havia aparecido em músicas, desenhos, pinturas, cinema e em obras literárias de grandes autores!
Nem todos a descreveram como um bicho nojento e causador de doenças. Muitos até a descreveram como um ser sensível, inteligente...
Samsa se "transformou", certa manhã, num nojento e monstruoso inseto: uma barata!
Ah, Kafka, o que diria, quando visse que, AINDA HOJE, para os olhos de muitos, aquele que não mais produz torna-se um peso para a família e para a sociedade, torna-se um monstro?
Porém, Valdirene, numa metamorfose inversa a de Kafka, foi realmente feliz, quando voltou a ser barata.
Veríssimo, quanta sabedoria nessa ironia cheia de brasilidade e de reflexão universal!
Para a iluminada Lispector, o encontro da personagem com uma barata representa o encontro consigo mesma e os questionamentos diversos sobre a existência humana.
Burroughs, de forma autobiográfica, em meio ao caos da sua própria existência, cria a personagem Lee que, com sua peculiar máquina de escrever, em formato de barata, surrealisticamente humanizada, desbrava os meandros da humanidade, das mazelas humanas.
Enfim, poderia continuar com inúmeras e diversas situações em que a nobre barata aparece na literatura e nos caminhos criativos das artes, porém, deparo-me somente com o fato de que: hoje, matei A barata.