Fim nada

O dia de Finados foi definido em mim quando criança. Aprendi, ano após ano, de observação involuntária que ventaria forte neste dia e que, coincidentemente ou não, seria sempre um dia poeirento de sol, com uma atmosfera tão seca quanto tensa.
Conheci a rotina da data a partir da primeira morte na família, quando passei a ver minha mãe sair na véspera para ir até o cemitério limpar e organizar as moradas dos parentes que partiram. O que me causava total estranhamento e confusão, afinal me ensinaram direitinho que todos eles já estariam morando no céu.
Na minha cabeça pequena, igualmente de vento, de pensamentos gigantescos, oportunescos e traquineiros, aquele não era  um feriado melancólico,mas sim um super feriado festivo. Quando mais eu poderia me infiltrar no labirinto de túmulos, num vertiginoso jogo de esconde-esconde com meus colegas ou, numa versão mais madura, me embrenhar entre os mesmos para observar sorrateiramente os garotos bonitos que vinham cumprir a obrigação da visita aos mausoléus solitários? Somente no dia dos mortos.
Em meio à incansável expedição pelos corredores de sepulturas, imaginava milhares de pares de olhos curiosos e confusos espiando, lá do céu, a festa que ocorria ali embaixo, como se ela estivesse acontecendo no lugar errado.
Na volta para casa, depois de muito sorvete e de impregnar o cheiro dos lírios, das palmas e das gérberas por todo o corpo, minha mãe me obrigava a deixar os calçados do lado de fora da casa e tomar banho para tirar qualquer vestígio da poeira dos falecidos. O que, em arremate aos fundamentos inconsistentes que teciam em minha vida desde que tive idade para compreender as palavras e identificar o medo, me levava a acreditar que os esqueletos vagavam pelos corredores de jazigos quando ninguém estava por perto.
Os adultos costumam contar uma história bonitinha para as crianças,   na qual a morte é uma viagem tranquila para um lugar paradisíaco onde, um dia, todos nós nos encontraremos por lá. E elas acreditam piamente. Contudo, eles, os adultos, desacreditam piamente no que contam.
É fato que ninguém sabe ao certo aonde o trem da vida vai parar, em qual a estação cada um irá descer e o que irá encontrar ao pisar pela primeira vez na plataforma de desembarque. Então, sendo assim, cada um deveria acreditar naquilo que lhe é mais é cabível e agradável. Entretanto, é comum que, ao crescer, as pessoas fiquem céticas e passem a crer num trem sem maquinista que leva a lugar nenhum.
Particularmente criei a imagem, o percurso e estação do trem que me é conveniente. Com isto, as partidas não são tão desesperadoras; as despedidas um sutil aceno de "até mais" ; a separação uma saudade temporária de alguém que irei reencontrar em breve. E enquanto o apito do trem não me assalta, procuro gastar intensamente cada dia da minha estada aqui, como se fosse o último. Conforme uma das pérolas de Quintana: “Morrer, que me importa? O diabo é deixar de viver”.


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Léia Batista
Enviado por Léia Batista em 02/11/2011
Reeditado em 02/11/2011
Código do texto: T3312816