Duas Máquinas
Corro pro filme na TV – mas de madrugada, porque antes só tem novela. De repente, a partir de uma ação que ocorre com frequência em muitos filmes, me dou conta de que a relação homem-carro é total. Ela se dá de forma absoluta. À toda hora a gente vê os dois juntos.
Seja um conversível, com um belo rapaz cantando e garotas se embalançando ao som de um rock; seja um moderno Audi, marca preferida dos mafiosos e seus asseclas super-armados; seja uma van, com sofisticados equipamentos de escuta e espionagem; seja um ônibus interestadual, levando a namorada pra longe; seja o indesejável veículo com a inscrição “police”, abaixo de qualquer logotipo ou logo nenhum, anunciando o que sabemos que vai ser desagradável... É sempre o carro e o homem. Claro que existe o avião, o navio, o trem. Mas com esses a freqüência das encenações é bem menor.
Como os filmes normalmente retratam a vida que levamos, podemos concluir que o carro assume uma importância gritante na vida do homem. Sendo contornadas com facilidade as dificuldades burocráticas para a obtenção da carteira de motorista, os desconfortos com as multas de trânsito, os pagamentos do seguro, os gastos com a manutenção do veículo, etc.
Depois da mãe, do pai e da mulher (e certamente dos filhos), o carro é a outra “pessoa” na vida do homem. Eles se amam tanto que se matam. Ou involuntariamente um mata o outro. Ou acabam com a vida de quem nem estava dirigindo. Mas andando pela calçada.
Não por acaso tivemos um filme chamado “Se Meu Fusca Falasse”. Não me recordo de outro que personalizasse de forma tão exemplar um meio de transporte diferente.
Por que é assim? Qual a razão dessa relação, pode-se dizer, intrínseca? Lembro-me de “Encurralado”, um dos primeiros filmes de Steven Spielberg. O melhor, no meu entender. Neste filme um homem de negócios é implacavelmente perseguido numa estrada pelo motorista de uma carreta. Um motorista que a gente não vê. Talvez essa a maior originalidade da obra, na medida em que o furioso caminhão, sem uma aparente razão para aquela perseguição, ganha vida a partir da desimportância de quem o dirige.
O que faz então o homem ver no carro, como em outros veículos automotores, a solução principal para o seu deslocamento? Suponho que isto acontece pelo fato de a relação se dar de forma mais imediata, direta ou íntima. (Tem gente que passa horas lavando o seu carro.) E em favorecimento do individualismo. Que no caso do automóvel é mais transparente. Mas que também pode ser observado nos coletivos do meio rodoviário. Os ônibus, por exemplo, quando muito transportam porções de um bairro. Ao passo que em um avião podem caber vários bairros juntos. Assim como no trem – e até de forma segmentada, tendo em vista o número de vagões. Enquanto o navio pode conduzir cidades inteiras, se considerarmos os luxuosos transatlânticos.
Normalmente o homem adquire o carro pela marca. Mas talvez possamos afirmar que o carro é uma das marcas do homem. Dada a possibilidade inquestionável que ele tem de ocupar um espaço definido dentro da complexidade mental do indivíduo.