TV PARA OS CACHORROS

A TV, devidamente segura por uma corrente atada a um pino na parede estava ligada em um canal qualquer, sem cor, já velhusca e em preto e branco, mas era impossível ouvir-lhe o som porque o barulho do trânsito intenso, do vai e vem das pessoas conversando, o latido dos cachorros conduzidos por seus donos e outros tantos ruídos em derredor atrapalhavam se por acaso desejasse acompanhar a programação. Ele, no entanto, não estava em sintonia com o que se passava na televisão, bem assim seus dois cães, um deles enorme e o outro não menos. Certamente naquele momento o mundo poderia desabar sobre eles, ou mesmo que uma bomba explodisse não dariam por si, nenhuma importância colocariam em algum desses acontecimentos.Tranquilos, entregues ao próprio silêncio os três esqueciam a passagem do tempo e seguiam o ritmo ditado por seus instintos particulares sem se deixar influenciar pelas atividades circunvizinhas.

O cãozarrão, provavelmente já habituado pelo cotidiano imutável de suas vidas, se estirava todo à vontade a dormitar sobre as pernas de seu amo cobertas por andrajos, ressonando inocente, as patas da frente sobre o focinho como se quisesse cobrir os olhos da claridade do dia; o outro cachorro, tão de estimação quanto o primeiro com certeza, até pela maneira como se deixava ficar tão próximo quanto lhe fosse possível, se acomodava um pouco acima da cabeça do sujeito da forma como podia, e por seu turno também abandonava-se aos braços de Morfeu sem a menor cerimônia. E ele, o cara, ali mesmo sobre a calçada de uma das avenidas mais movimentadas de Buenos Aires, a Santa Fé, na frente de um quiosque como aqui chamam, cigarreira como é chamada no Brasil, debruçado em cima de restos de caixas velhas, pedaços de panos rasgados sobre os quais paralelepípedos faziam as vezes de peso para que não voassem, enrolado num pano velho, sujo e cheio de manchas de origens as mais diversas, chapéu sobre os olhos para impedir que os raios solares se intensificassem sobre seus olhos, simplesmente dormia. Ao lado de seus cães, com sua televisão preto e branco velhusca ligada talvez para niná-lo, com sua tranquilidade inexplicável num local tão bruscamente inesperado.

Eu já vira outros moradores de rua de Buenos Aires em alguns bairros, a exemplo de Palermo e San Telmo, muitos com seus carrinhos de madeira onde punham os pertences e as roupas, seus plásticos para cobri-los do frio e da chuva à noite, seus improváveis trastes e tralhas que para nada serviam, seus cachorros sonolentos, suas inúmeras piúbas espalhadas numa vasilhas e encontradas pelo chão sujo e sabe Deus o que mais completando o cenário, porém nunca antes soubera nem avistara, nem imaginara, nem sequer ousaria que haveria um deles ao mesmo tempo habitando as ruas e sendo, por incrível que pareça, dono de uma inseparável TV, que dividia com seus dois cachorros de estimação, ou talvez até mesmo fossem para os bichos passarem o tempo enquanto ele se concentrava somente em dormir depois de muitas baforadas. Ali naquele lugar, se antes não era sua casa, seu lar, onde sua privacidade precisava ser respeitada, passara a ser. Seus súbitos roncos e o suspirar dos cachorros deixavam isso bem claro.

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 01/11/2011
Reeditado em 01/11/2011
Código do texto: T3310053
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