O cheiro de um par de sapatos
Todos os anos, no mês de Julho, a Igreja Católica promovia nove dias de festas em louvor à padroeira de Bandeirantes. O acontecimento era motivo de muita alegria e se constituía como o maior acontecimento do ano, sendo esperado com ansiedade, pois movimentava o lugar e propiciava momentos de diversão, com bailes e leilões, depois das atividades religiosas. Eram dias para os quais se preparava as melhores roupas e calçados, pois era a ocasião em que os moradores das fazendas e chácaras dos arredores também participavam das festividades, ou seja, toda a sociedade local se fazia presente. Eu deveria ter uns quatro anos de idade quando, para pagar uma promessa feita por minha mãe, tiveram que me vestir de anjo para participar de uma procissão. Roupa pronta, faltavam os sapatos. E lá fui eu, com meu pai, a uma pequena loja. Tão pequena e humilde que meu pai me colocou em cima do balcão para calçar os sapatos. Perfeita no papel estereotipado do anjo branquinho, louro, de olhos claros (eu pelo menos nunca vi uma escultura/imagem/figura de um anjo negro, índio ou oriental), eu só via os sapatos! Aliás, só sentia os sapatos! Tão branquinhos, tão cheirosos! Que cheiro bom tinham os meus sapatinhos brancos! Então, toda faceira, segui a procissão no colo do meu pai o tempo todo, afinal como ia pisar na terra vermelha com meus sapatinhos tão novos e cheirosos? Até hoje não sei o motivo pelo qual foi tão marcante na minha infância um fato tão corriqueiro, como a compra de um par de sapatos. Será que, pela situação financeira da família, não ser um fato tão corriqueiro assim? Ou será que os sapatinhos eram mesmos tão cheirosos que até hoje posso sentir o seu perfume? O que sei é que eles eram tão especiais que não dei importância para o vestido e nem para as asas do anjinho... só tinha olhos e nariz para os meus lindos sapatinhos.