VAI CORTAR A PERNA NA ALTURA DO FÊMUR? (Opinião sobre o Enem 2011)
Que tem mais de 50 anos de idade deve ter estudado em escolas tradicionais, onde o professor (cuja autoridade era inquestionável) para explicar as suas matérias não contava com mais do que globos, mapas, uma régua grande, voz, giz e quadro, mas também com duas coisas raríssimas hoje: o apoio dos pais e o respeito da sociedade.
Aos alunos dessa década cabiam: prestar muita atenção, ler silenciosamente, ler em voz alta, copiar, copiar, copiar, estudar os questionários, decorar as perguntas e respostas do ponto a ser tomado no dia seguinte, decorar a tabuada em forma de cantilena, os afluentes das margens direita e esquerda dos principais rios, as classes de palavras, as preposições, as conjunções, os diversos pronomes, os advérbios, os substantivos coletivos... e depois, as fórmulas matemáticas para calcular diversos resultados, inclusive os de física e química.
Com a democratização do ensino e a expansão da rede pública e privada, com o aparecimento e o prestígio das idéias de Piaget e Vigotsky, e com os recursos tecnológicos a preços acessíveis à maioria, hoje o número de alunos que frequentam as escolas é bem maior. Esses contam com professores (bem formados ou não) licenciados e pós-graduados, que foram informados sobre as teorias construtivistas e socio-interacionistas de ensino-aprendizagem e manuseiam bem os computadores, programas, datashows, quadros digitais interativos...
Caso me perguntem se com tantas facilidades (digamos assim) o nível de ensino hoje é melhor do que antigamente, eu digo que não. Não sou saudosista, percebo a manipulação comportamental a que fomos submetidos, a partir da adoção das idéias positivistas de Auguste Comte e as behavioristas de Skinner, mas tenho evidências que me permitem assumir a posição de que o ensino e a aprendizagem ainda não estão nada bem.
Justifico meu ponto de vista a partir das muuuuuitas sandices que leio, a cada vez que sou convocada para corrigir textos elaborados por vestibulandos. Em minha opinião uma redação é o retrato do que o sujeito tem dentro da cabeça. Dessa forma, se a produção é confusa, desconexa, repetitiva, prolixa, cheia de inadequações vocabulares... pode crer, o autor também o é.
“E daí, qual é o problema de não se saber pensar direito, de não se ter repertório ou de não se saber quase nada sobre o que está acontecendo no mundo?” Perguntar-me-ão os que estão acompanhando a minha linha de raciocínio. “E vocês dariam que tipo de emprego e salário a quem pouco sabe e ainda tem a cabeça confusa?” perguntarei eu aos meus interlocutores imaginários.
Percebo que respostas às questões como: “O que ensinar?” e “Como ensinar?” só farão sentido se o docente souber claramente responder a duas coisas: “Por que ensinar?”, “Quais competências e habilidades a sociedade cobrará do ser humano que me é confiado agora?”
O sociólogo Philippe Perrenoud possui vasta obra sobre esse tema e o MEC, corroborando as suas idéias, em 1998, na gestão do saudoso ministro Paulo Renato de Souza, instituiu o Exame Nacional do Ensino Médio- Enem, definindo as competências e habilidades que o egresso desse nível de ensino deverá ter.
No entender do Inep- Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira- as 05 competências que o sujeito deve demonstrar ter adquirido ao concluir o Ensino Médio são: dominar linguagens, compreender fenômenos, enfrentar situações problemas, construir argumentações e elaborar propostas de intervenções solidárias.
Para demonstrar essas aquisições, o exame pode propor que o discente demonstre se detém 21 habilidades, e essas envolvem processos cognitivos, que precisam ser mediados pelos educadores durante toda educação básica. Nesse ponto cabe a pergunta se alguém consegue desenvolver nos outros o que não tem dentro de si, mas esse pode ser um tema para outro artigo de opinião, não para esse.
Reconhecido como bom o suficiente para medir o desempenho dos alunos, esse exame tem se tornado o passaporte para ingresso em faculdades e universidades, mas desde 2009, por força de gente bandida, canalha, irresponsável, ele tem tido falhas em seus processos de aplicação e tem sido o prato predileto de todos os irresponsáveis que adoram “ver o circo pegar fogo” .
Envergonha-me morar em um país onde as pessoas conspiram contra um instrumento que pode melhorar as cabeças das gerações que nos sucederão, onde diante de denúncias de fraudes um procurador prefira ignorar a sensatez e pedir a anulação geral do exame, por que algumas questões teriam vazado no Ceará em 2011.
Creio que melhor seria unir esforços junto à polícia federal para descobrir quem são os merdas que esculhambam as coisas boas, mas como não me cabe determinar ou propor tal medida, resta-me, no máximo, perguntar: “Quando temos bicho no dedinho do pé devemos cortar a perna na altura do fêmur?”