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Roupa branca, lentilha, animais que fuçam pra frente. Pronto. Ah, claro, pular ondinhas. Agora sim! O circo das festividades do Ano Novo está completo. Sabem o que é mais irônico? Todas as rezas, crenças e rituais para o ano que nascerá, festejam a incompetência do ano que se afoga. Isso mesmo! Ao pular as três ondinhas esquecemos de nos perguntar: o ano de 2006 sabia nadar? Receio que não brindamos a aproximação do novo calendário, mas sim, o distanciamento do ano ultrapassado, esquecido, ordinário. A incapacidade de realizar os sonhos prometidos no último festejo nos envergonha. Dia trinta e um de dezembro é o momento de repetir enfático “ganhei mais uma chance, mais uma chance!” Escreveremos listas, somente com pontos a melhorar, e afixaremos orgulhosos na porta do armário, torcendo para que a fita crepe falhe e derrube o compromisso firmado. Devoraremos pratos ultracalóricos, “Hoje posso sair do regime”, mesmo que a banha esmagada na roupa alerte para a inexistência do controle alimentício há meses. Abraçaremos parentes distantes, quem sabe até com lágrimas nos olhos e carnívoros beijos interesseiros. “Vocês são minha família... minha família!!!” Dançaremos agarrados em cinturas desconhecidas o novo hit do verão, torcendo pela infinidade do coro forçado. A chuva de cerveja nos cabelos alisados não nos incomodará, pois acreditamos que toda a vaidade fútil ficou pra trás. “Solidariedade, essa é a nova norma para o ano que nasce.” Beijaremos beiços diversos, cuidando para que todo nosso carinho seja distribuído de maneira igualitária. “Viva o amor! Aumenta a música! Esse é o meu ano! Quanto tá a cerveja, tio?” Patrocinaremos o álcool alheio, porque mesquinhez, controle de gastos e planejamento monetário são coisas do passado. Assistiremos aos fogos, “Nossa! Muito mais lindo do que no último ano”, mesmo sem lembramos se foi a luz verde ou a vermelha que virou um coração e depois uma estrela cadente, caindo sobre o mar poluído. “Junta, junta, pessoal! Hora da foto!” Registraremos com câmeras, celulares, gravadores ou qualquer outro dispositivo tecnológico, os momentos vividos, mesmo sabendo que poucos serão instantaneamente revelados. Trocaremos centenas de olhares sem nome, pelo puro prazer de inflar nossos egos miúdos. Confessaremos, “Fui eu quem transou com o Gui, seu ex!”, e desculparemos, “Esquece! Isso é coisa do passado! Bola pra frente!” Nos juntaremos ao bloco revoltado que tenta impedir os músicos de irem embora. “Mas que absurdo!! São seis da manhã ainda!” Filosofaremos a áurea virgem espalhada no céu límpido, acenando descoordenados para as nuvens apressadas. Esqueceremos os chinelos pelo caminho, eternizando o contato da sola pelada com alguns cacos de vidro esverdeados. “Que curativo, o que? Vamos dançar!” Puxaremos pelo braço os bêbados entregues ao poder da gravidade, clamando pela animação daqueles que nem os olhos conseguem abrir. “Sai dessa lixeira, Zé!!! A festa tá só começando!” Caminharemos pela areia, metricamente desenhada pelo lixo que restou do festejo, cantando “que tudo se realize, no ano que vai nascer...” Chegaremos finalmente em casa, despedindo-nos, um a um, das desconhecidas amizades que seguem pipocando no arrastão etílico. Deitaremos encharcados com a mesma roupa branca, digo, encardida, no primeiro colchonete largado ao chão. Fecharemos os olhos, ainda sorrindo, assoviando o último refrão.
E acordaremos em 2007, amassados, roucos, com a língua áspera e uma puta dor de cabeça.
Feliz Ano Novo.