A gata, a morte, a tia e a estrada
Num desses dias de sol, voltando da escola, minha filha Dália reparou numa gatinha, coincidentemente quando passava em frente à casa de nossa tia Eudênia. De mirrada, a criaturinha poderia ser uma ratazana; pelo que verifiquei, havia sido abandonada tão logo curado o umbigo.
Sendo Dália quem é (um tronco de amarrar cerca com coração – e de manteiga!), recolheu a bichana e negociou sua permanência no apartamento com 'o jeito dália de ser’: “Mainha, prometo: cuido. Dou banho, comida, limpo xixi e cocô... assim que ela ficar mais forte, maior, levo prá fazenda do Pai; lá tem rato, preá, lagartixa, e ela vai se dar muito bem! Mas acho que você vai se apaixonar, também, e nem vai querer que ela vá embora... Deixa, mãe?”, e fez aquela cara de cachorro pidão à qual poucos resistem, nem eu.
De forma que, naquela segunda feira, ganhamos um animal de estimação, e acompanhamos por quase uma semana seu desenvolvimento. No sábado, a gata morreu (há outro jeito de dizer isso?); amanheceu sem andar, sem comer, sem miar, e de vez em quando, ficava hirta, como em câimbra total. Ela nem reparou, mas ficou rodeada de mulheres chorando; controlei o pânico e mandei Dália e gata ao veterinário, com a recomendação de fazer o que fosse preciso.
Confesso: não quis me envolver mais que o estritamente necessário. Quando criança, minha família teve um cachorro (Japonês – e não perguntem o porquê, tal nome veio antes de mim); era o mais educado, inteligente, fiel e bonito dos amigos. Ele sumiu e por muito tempo ficamos todos jururus; meu pai jamais criou outro, mesmo vivendo numa fazenda, onde cachorros, de tão úteis, tornam-se indefectíveis. À época com cinco anos, passava um bom tempo à janela, esperando-o apontar na estradinha entre a porteira do curral e o portão do nosso terreiro; olhava compridamente também outras estradas – inclusive estranhas, distantes, enormes, como a que levava à casa dos avôs em Fortaleza – porque criança não distingue estrada, mas é capaz de reconhecer amigo.
Cresci com a ausência de Japonês ou outro bicho ao qual pudesse me apegar, e foi esquisito quando Dália fez quatorze anos e ganhou um coelho, que insistiu em criar. Nino, uma coisinha branca e macia, sempre fugia da gaiola e era um azougue. Nessa época morávamos numa casa próxima à lagoa Salina, com mato e água e bichos que atraíam cães vadios; após uma das fugas não houve retorno (vizinhos disseram tê-lo visto correndo à frente dos cachorros; espero que tenha escapado).
Três semanas depois do sumiço do orelhudo, encontrei um conhecido com uma caixa de sapatos cheia de furos, por onde respirava e via o mundo uma coelha, que seria descartada porque a criança para a qual fora comprada desenvolvera alergia. Sim, eu poderia ter feito outra coisa (ir à manicure, talvez); sim, eu poderia encostar a cabeça no travesseiro e dormir tranquilamente a noite inteirinha, mas escolhi dizer às meninas: “Não é uma substituição, é para vocês exercitarem responsabilidade.” (o que não é dito talvez seja o mais importante). E contei a história, meio puta da vida por se poder comprar um ser vivo e depois larga-lo se ocorre uma inconveniência. As meninas corresponderam à altura, escolheram um nome, Lili (leia-se Lilith), e Dália, muito mais esperta agora, levou a peluda branca e mel para a fazenda do pai, já que gaiola e matilha faminta não mereciam confiança.
Pois então, a gata... De acordo com o médico, estava desnutrida – a despeito da mamadeira, minúscula e dispendiosa, adquirida no início da semana; então, compramos leite próprio (saibam: bebês gatinhos ou humanos sem mãe devem tomar o mesmo leite – caro, é lógico); a criaturinha foi medicada com vitaminas e analgésicos (as ‘câimbras’ eram cólicas fortíssimas). Apesar de me esquivar, acabei indo, e fiz triste figura junto ao veterinário, com as lágrimas escorrendo feito xixi de vaca e tanta esperança quanta um vaca pode ter. As meninas controlaram-se melhor; Manu me abraçou e consolamo-nos mutuamente, mas Dália culpou-se: “Se eu tivesse levado ‘ela’ ao médico na segunda feira...” Afiancei-lhe que fizera seu melhor possível, frente às informações de que dispunha, e que a gatinha, apenas porque fora recolhida, tivera sorte em viver mais cinco dias.
Por birra entre nós ou pura incapacidade de escolher – ou mera intuição? – até apresentar-se doente a gata não possuía nome; para virar ente, virou 'Bebé'. “Por causa de onde a encontrei...”, disse Dália. Tia Eudênia, nossa Bebé original, teve mais que cinco dias de sobrevida, mas há tipos de cânceres famintos que nem cães vadios, que não nos permitem fazer nosso melhor possível.
Neste mesmo mês perdemos uma Bebé (inocente e talvez fadada a triste destino, porque gatos tem destino, enquanto gente se gerencia), e se completam dois anos de ausência da Outra: a alegre e eficiente organizadora de coisas e pessoas, a colecionadora tranquila de objetos cujas memórias atiçam as nossas, a responsável interferente na vida alheia, a mãe de todos os sobrinhos, a tia dos amigos dos sobrinhos, a avó de crianças onde nenhuma gota de seu hereditário sangue corre, a mais lucidamente generosa das pessoas que já conheci.
Às vezes, resta-nos somente ficar à janela, olhando a estrada, porque não se estranha o caminho pelo qual volta um amigo.
(E o que não foi dito talvez seja, mesmo, o mais importante.)