Contradições

Nesta semana a Biblioteca Pública Municipal Aurélio Camilo celebrou seu quadragésimo quinto aniversário. Fiquei imensamente feliz por ter sido convidado, porque ela foi parte tão importante do meu tempo de menino que mal encontro palavras para expressar o que sinto em relação a ela. O certo que sei é que serviu para descortinar-me um universo que eu não teria outra forma de conhecer.

Acho tão apropriado o nome do cidadão cercadense que deu título à instituição! Aurélio Camilo foi o homem que em 1928, quando já casado há três anos e contando vinte e quatro anos de idade inaugurou o primeiro cinema do Cercado, o que revelava seu gosto pelas artes e pelo desenvolvimento de sua terra natal

Aurélio Camilo faleceu quando eu tinha dois anos e nossa diferença de idade é de seis décadas, mas cresci familiarizado com o seu nome. Eu tinha a carteirinha de número 100 da biblioteca e tenho o que contar a respeito.

Quando eu era menino o desvelo de minha mãe no cuidado para com minha integridade física (tinha eu já uma frágil compleição), incutira-lhe na mente um estranho estribilho: “_ você só poderá entrar na água depois que aprender a nadar.” Ainda não aprendi! Mas não é por covardia que fico sentado na praia assistindo à evolução das ondas. È por obediência.

Coisas estranhas aconteciam naquele meio simples em que fui criado. Algumas me pareciam absurdamente contraditórias. Aos dez anos eu já tinha lido tudo o que a Biblioteca Pública Aurélio Camilo dispunha das obras de Monteiro Lobato e de Francisco Marins. Dona Beatriz, minha professora do quarto ano, me incentivava a leitura e o menino sofrido que fui, encontrou nos livros o bálsamo para suas dores. Foi assim até o dia em que uma amiga de minha mãe, em visita à nossa casa, me vendo naquela saudável ocupação cismou de jogar barro. Tem gente que só encontra prazer na dor alheia. Inventou para a Dona Lia, minha mãe, uma mirabolante história de certo fulano de tal que havia endoidado de tanto ler. Pronto! Foi-me tirado o prazer das aventuras, das viagens fantásticas pelo mundo do conhecimento e da fantasia. A proibição, contudo, longe de me afastar dos livros tornou-os mais fascinantes ainda, porque lhes conferiu aquela dose quase imperceptível de prazer dos atos transgressivos.

Eu lia escondido.

Foi quando eu descobri que as coisas se valorizam pela escassez. Os momentos propícios à leitura se escassearam. Mas como era bom esperar por eles! Hoje reflito se não deveria ter feito a mesma proibição a meus filhos. Talvez lessem mais. Posso estar errado, mas penso que minha contravenção àquela lei materna não me trouxe grandes males.

O fato é que descobri um tempero para a vida que poucos podem tolerar: a contradição. É como a pimenta no seu prato predileto. Arde, mas você quer. As duas maiores mestras da minha infância me ensinaram coisas contrárias: ler é bom; ler endoida. E aí? Sai dessa, nêgo!

Talvez endoidar seja bom.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 25/10/2011
Reeditado em 17/05/2015
Código do texto: T3296756
Classificação de conteúdo: seguro