Um Pouco Mais
Um Pouco Mais
Gosto de incensar o quarto depois de arrumar a cama. Dá um senso de ordem não perceptível aos olhos. A fumaça do incenso, o aroma, o lençol esticado. Nem preciso olhar a janela, dependendo do dia, para saber do clima – as vidraças estalando me dizem, assim como o silêncio me diz da inveja.
Se eu tivesse te amado um pouco mais, teria perdido a conta e a conclusão seria amargura. Melhor assim. Nos momentos de emoção estável, concluo: melhor assim. Tantas vezes quantas fossem necessárias eu iria preparar e esquentar o prato, tamanho o seu cansaço, que nem a fome, eu me lembro, você percebia. Para essa ação, não haveria um pouco menos.
Seria duvidoso o destino ser mais generoso do que isso – a primeira vez em que estive na sua casa o aparelho tocava “Você vai me seguir, por onde quer que eu vá...”. Dez anos depois, na mesma época do ano, aos quarenta e cinco minutos do segundo tempo - porque tudo na minha vida acontece assim - me vejo de repente assistindo 170 adolescentes cantando a mesma música. Você estava ao meu lado. Não seria possível pedir um pouco mais.
Talento e ilusão. É necessário ter o primeiro para propiciar aos outros o segundo.
Não raro me vejo perguntando se pertencemos um ao outro, ‘como um milagre’. Sim, você numa cidade e eu noutra. Toda vez que nos falamos você diz ‘minha cidade’, ‘sua cidade’... Ora, isso faz as coisas parecerem distantes.
Preciso comprar cotonetes, pilhas, panos de prato, deixo os cabelos muito curtos, vivo e me comporto como um militar aposentado que desistiu de tentar compreender a ebulição ao redor, não por falta de forças, falta alguma coisa, concordo, dizer ‘um pouco mais’ seria uma jogada de marketing entre letras, hei de achar uma saída, ou um paliativo, aliás, reservo-me um talento especial para viver na base de paliativos e com eles iludir-me.
Foi um belo sonho, sonhar com os 170 meninos e meninas cantando Chico Buarque numa construção cercada de árvores, numa noite de pré verão, com você ao meu lado. Não tenho arbítrio sobre os meus sonhos e nesse, eu te puxava pelo braço, para que a gente se afastasse um pouco e pudesse ver o quadro inteiro. Quando acordei, aí sim, pedi um pouco mais. Mas que na primeira vez que estive na sua casa o Chico cantava “Você vai me seguir...” e a sua amiga maluca sorria pra mim, como se ela estivesse me dando um presente que seria uma experiência de vida, de dor e confusão, de tentativa e erro, de lampejos felizes como um mar de joaninhas, como se o Chico tivesse nascido para musicar aquele momento e como se tudo, na verdade, fosse apenas um jogo onde estamos momentaneamente encarnados, sem tempo, sem espaço, uma grande família com visão periférica servindo-se mutuamente de tantas coisas que seria um atrevimento pedir um pouco mais. Ocorre que quando eu acordo, de manhã, a vida não me diz um pouco menos. Apesar...
Sim, ontem foi diferente. A vida me dizia, posso ouvi-la, vá com calma, e por conta de uns documentos que eu precisava providenciar assisti a uma apresentação gratuita de um trio chamado Taj alguma coisa, soberbos, eles davam a impressão de estar, como dizer, integrados a Força Maior. Encaro isso como um estágio evolutivo, que acontece logo depois da cura.
Tempo e Lugar, fatores imprescindíveis para que a cura aconteça, inda que, dia ou outro, eu pense a meu respeito algo do gênero: você quer ser tratado, mas não curado, pois a cura implica na responsabilidade de ser são. Se eu tivesse estudado um pouco mais, pediria licença e tocaria com eles.
E ontem, após o Taj, ao me dirigir para um local onde os livros sentam no nosso colo e as páginas se movem sozinhas, ou, refraseando, parece que nem as movemos, me veio à mente que os pequenos gestos dizem mais de uma pessoa do que qualquer outra coisa na face desta terra. Lembrei-me que você sempre sabia das pequenas necessidades dos que estavam à sua volta. Um pouco mais disso e todos teríamos ascendido ao paraíso sem o desgaste da aventura terrena, sem os medos, a saudade e os contratempos. Só um pouco mais e teríamos conseguido, mas não haveria mérito, verdade seja dita. Não me admira estarmos aqui.
Também ontem fui ver as Marias, a Maria Milu e a Maria Delfina. Duas figuras que se encontraram nesse universo infinito de Deus. Tão logo eu cheguei soou o gongo do café, levei uma em cada braço, a idade delas pede isso, a minha idade é um fio de navalha disponível. Por hora.
Hora do cigarrinho no jardim, enquanto elas tomam café com bolo de milho. Aparece a Cecília, de cadeira de rodas, junto dela um homem muito magro, ele fuma, ela começa a falar dele como se não estivesse presente, que ele foi uma pessoa muito importante na TV e no cinema, que a mulher foi fazer um filme nos States e sumiu. Por isso ele ficou assim. Ele traga e adverte sobre os malefícios de quem fala da vida alheia. Ela sacode os ombros e me conta que durante 40 anos teve enxaqueca todos os dias, porém, ano retrasado um tumor maligno nasceu na sua perna direita. Cortaram a perna e a enxaqueca passou. A vida cobra estranhos pedágios. Então surge a Dedé, uma decana que não pára um segundo e parece abobalhada. Cecília explica que basta dizer para ela ‘quarto sete’. Dito e feito. Como um robô corcunda e manco Dedé voltou para o seu aposento. Cecília continua explicando, “era uma mulher saudável quando chegou aqui. Vieram ela e a irmã. Um ano depois a irmã morreu, e ela ficou desse jeito”.
Cheguei em casa à noitinha, quando desci do ônibus um sujeito alto e gordo baforava exclamando para outro ao seu lado: “Você perdeu, rapaz, ainda não se tocou? Perdeu. Vai continuar tentando do seu jeito? Do seu jeito não funciona. Tem de ser do jeito dele!” E ao terminar a frase ergueu o braço, com o indicador em riste, apontando para cima.
Em suma, acho que é isso. Sabe o que é que se diz sobre as boas coisas da vida: se você teve uma vez, pode ter de novo.
(Imagem: Frederic Leighton)
Um Pouco Mais
Gosto de incensar o quarto depois de arrumar a cama. Dá um senso de ordem não perceptível aos olhos. A fumaça do incenso, o aroma, o lençol esticado. Nem preciso olhar a janela, dependendo do dia, para saber do clima – as vidraças estalando me dizem, assim como o silêncio me diz da inveja.
Se eu tivesse te amado um pouco mais, teria perdido a conta e a conclusão seria amargura. Melhor assim. Nos momentos de emoção estável, concluo: melhor assim. Tantas vezes quantas fossem necessárias eu iria preparar e esquentar o prato, tamanho o seu cansaço, que nem a fome, eu me lembro, você percebia. Para essa ação, não haveria um pouco menos.
Seria duvidoso o destino ser mais generoso do que isso – a primeira vez em que estive na sua casa o aparelho tocava “Você vai me seguir, por onde quer que eu vá...”. Dez anos depois, na mesma época do ano, aos quarenta e cinco minutos do segundo tempo - porque tudo na minha vida acontece assim - me vejo de repente assistindo 170 adolescentes cantando a mesma música. Você estava ao meu lado. Não seria possível pedir um pouco mais.
Talento e ilusão. É necessário ter o primeiro para propiciar aos outros o segundo.
Não raro me vejo perguntando se pertencemos um ao outro, ‘como um milagre’. Sim, você numa cidade e eu noutra. Toda vez que nos falamos você diz ‘minha cidade’, ‘sua cidade’... Ora, isso faz as coisas parecerem distantes.
Preciso comprar cotonetes, pilhas, panos de prato, deixo os cabelos muito curtos, vivo e me comporto como um militar aposentado que desistiu de tentar compreender a ebulição ao redor, não por falta de forças, falta alguma coisa, concordo, dizer ‘um pouco mais’ seria uma jogada de marketing entre letras, hei de achar uma saída, ou um paliativo, aliás, reservo-me um talento especial para viver na base de paliativos e com eles iludir-me.
Foi um belo sonho, sonhar com os 170 meninos e meninas cantando Chico Buarque numa construção cercada de árvores, numa noite de pré verão, com você ao meu lado. Não tenho arbítrio sobre os meus sonhos e nesse, eu te puxava pelo braço, para que a gente se afastasse um pouco e pudesse ver o quadro inteiro. Quando acordei, aí sim, pedi um pouco mais. Mas que na primeira vez que estive na sua casa o Chico cantava “Você vai me seguir...” e a sua amiga maluca sorria pra mim, como se ela estivesse me dando um presente que seria uma experiência de vida, de dor e confusão, de tentativa e erro, de lampejos felizes como um mar de joaninhas, como se o Chico tivesse nascido para musicar aquele momento e como se tudo, na verdade, fosse apenas um jogo onde estamos momentaneamente encarnados, sem tempo, sem espaço, uma grande família com visão periférica servindo-se mutuamente de tantas coisas que seria um atrevimento pedir um pouco mais. Ocorre que quando eu acordo, de manhã, a vida não me diz um pouco menos. Apesar...
Sim, ontem foi diferente. A vida me dizia, posso ouvi-la, vá com calma, e por conta de uns documentos que eu precisava providenciar assisti a uma apresentação gratuita de um trio chamado Taj alguma coisa, soberbos, eles davam a impressão de estar, como dizer, integrados a Força Maior. Encaro isso como um estágio evolutivo, que acontece logo depois da cura.
Tempo e Lugar, fatores imprescindíveis para que a cura aconteça, inda que, dia ou outro, eu pense a meu respeito algo do gênero: você quer ser tratado, mas não curado, pois a cura implica na responsabilidade de ser são. Se eu tivesse estudado um pouco mais, pediria licença e tocaria com eles.
E ontem, após o Taj, ao me dirigir para um local onde os livros sentam no nosso colo e as páginas se movem sozinhas, ou, refraseando, parece que nem as movemos, me veio à mente que os pequenos gestos dizem mais de uma pessoa do que qualquer outra coisa na face desta terra. Lembrei-me que você sempre sabia das pequenas necessidades dos que estavam à sua volta. Um pouco mais disso e todos teríamos ascendido ao paraíso sem o desgaste da aventura terrena, sem os medos, a saudade e os contratempos. Só um pouco mais e teríamos conseguido, mas não haveria mérito, verdade seja dita. Não me admira estarmos aqui.
Também ontem fui ver as Marias, a Maria Milu e a Maria Delfina. Duas figuras que se encontraram nesse universo infinito de Deus. Tão logo eu cheguei soou o gongo do café, levei uma em cada braço, a idade delas pede isso, a minha idade é um fio de navalha disponível. Por hora.
Hora do cigarrinho no jardim, enquanto elas tomam café com bolo de milho. Aparece a Cecília, de cadeira de rodas, junto dela um homem muito magro, ele fuma, ela começa a falar dele como se não estivesse presente, que ele foi uma pessoa muito importante na TV e no cinema, que a mulher foi fazer um filme nos States e sumiu. Por isso ele ficou assim. Ele traga e adverte sobre os malefícios de quem fala da vida alheia. Ela sacode os ombros e me conta que durante 40 anos teve enxaqueca todos os dias, porém, ano retrasado um tumor maligno nasceu na sua perna direita. Cortaram a perna e a enxaqueca passou. A vida cobra estranhos pedágios. Então surge a Dedé, uma decana que não pára um segundo e parece abobalhada. Cecília explica que basta dizer para ela ‘quarto sete’. Dito e feito. Como um robô corcunda e manco Dedé voltou para o seu aposento. Cecília continua explicando, “era uma mulher saudável quando chegou aqui. Vieram ela e a irmã. Um ano depois a irmã morreu, e ela ficou desse jeito”.
Cheguei em casa à noitinha, quando desci do ônibus um sujeito alto e gordo baforava exclamando para outro ao seu lado: “Você perdeu, rapaz, ainda não se tocou? Perdeu. Vai continuar tentando do seu jeito? Do seu jeito não funciona. Tem de ser do jeito dele!” E ao terminar a frase ergueu o braço, com o indicador em riste, apontando para cima.
Em suma, acho que é isso. Sabe o que é que se diz sobre as boas coisas da vida: se você teve uma vez, pode ter de novo.
(Imagem: Frederic Leighton)