Até os doutores falam bobagens
Fui educada para casar e casar uma vez só, para sempre. Ser dona de casa, esposa e mãe era o papel que me cabia e ao qual me dediquei com amor e zelo por 27 anos. Ao terminar o casamento encontrei-me numa situação nada confortável, sem pensão alimentícia e sem meios de ganhar o meu sustento de forma razoável. Detentora de dois diplomas de segundo grau (Contabilidade e Magistério) percebi rapidamente que eles, de forma alguma, abririam portas para a minha nova e urgente vida profissional. O curso superior era indispensável.
Tive conhecimento, então, que havia na cidade um curso de atualização para o magistério, que junto com o diploma que eu já possuía, poderia ser uma solução. Na primeira aula, uma professora-doutora muito conceituada por seus conhecimentos de alto nível, foi a nossa palestrante. Qual foi a minha surpresa quando em sua fala ela deixou claro que admirava as profissionais que buscam se atualizar, o que gera novas possibilidades de trabalho e de mudança de vida, mas que isso não tem efeito se uma mulher depois de ficar por 30 anos dentro de casa resolve começar uma vida profissional, numa alusão à idade e ao despreparo. Senti como se tivesse levado um soco no estômago! Era como se ela estivesse falando de mim e para mim, e na minha já latente insegurança, era como se eu mergulhasse num poço profundo e escuro, e na maior solidão. Não conseguia entender, e ainda não entendo, como uma mulher culta e inteligente poderia ter uma fala tão desastrosa e infeliz, numa época em que tanto se alardeia o respeito à diversidade, e nesse contexto, o não preconceito à cor, idade e outros elementos. Entretanto, eu não me deixei abater. Eu não aceitaria aquele fatalismo. Sou uma mulher dotada de inteligência e força e, não estaria morta para a vida por escolhas feitas no passado, com tantas possibilidades no futuro. Fiz o dito curso, que se mostrou inadequado para o que eu pretendia, sendo que recebi propostas de trabalho inaceitáveis, mas que me encorajou a prosseguir.
No ano seguinte resolvi que faria o vestibular. Sem dinheiro para pagar um cursinho, estudei sozinha em casa, disciplinadamente, todos os dias, exceto aos sábados e domingos, pois precisava dar atenção aos meus filhos. Sem dinheiro para uma faculdade particular, decidi tentar o vestibular da Universidade Federal, muito concorrido. Fiz e passei muito bem classificada. As pessoas poderão dizer: Ah! É Pedagogia! Curso fácil! E eu digo: as quase mil pessoas que se inscreveram comigo e não conseguiram uma das 60 vagas oferecidas, não disseram isso! No 2º ano do curso o Tribunal de Justiça abriu edital para concurso no qual havia um cargo perfeito para mim: exigia o curso de magistério ou cursando Pedagogia. Eu tinha os dois. Fiz e fui aprovada em 1º lugar. Nunca fui chamada para assumir o cargo! Decepção? Muito grande! Grande mesmo! Desânimo? Nenhum!
Prossegui no meu curso, meu filho de 22 anos sustentando a casa, e eu dedicada aos estudos. No último ano da faculdade, a prefeitura abriu edital para concurso. Cargo: professor. Final de ano, fazendo monografia, a minha orientadora me deu uma semana para que eu estudasse para o concurso, sem compromisso com a monografia! Estudei muito. Nas provas escritas, passei em 1º lugar... caí para 3º na prova de títulos. Graças à boa classificação consegui a única vaga que havia na escola que fica a quatro quarteirões da minha casa. Tomei posse com a declaração da Universidade, pois ainda não havia colado grau. Resumindo: quatro anos após a fala infeliz daquela pessoa, eu havia concluído um curso superior numa Universidade Federal e passado em 1º lugar em dois concursos, um deles de nível superior.
Hoje sou efetiva no serviço público municipal, profissional respeitada, pós-graduanda em Coordenação Pedagógica.
Ah! E ainda tirei dez na monografia, sendo que o trabalho ficou tão bom que no ano seguinte fui convidada pela própria Universidade Federal a apresentá-lo na semana da Pedagogia. Sendo assim, tenho dois certificados: um como participante/ouvinte e no ano seguinte como palestrante! Também o apresentei num grande evento que reúne as Universidades de Campo Grande, sendo que nesse dia fui convidada a apresentá-lo em Rio Brilhante, cidade do interior do estado, convite que aceitei com grande satisfação.
Relembrando todos esses fatos fica muito claro que o que me moveu foi o imenso desejo de deixar os meus filhos livres para seguirem suas vidas, sem se preocuparem com o meu sustento. Consegui. Trabalho, estudo, leio, escrevo, ganhei nesse percurso amigos queridos, enfim, vivo! Sem questionar se isso ou aquilo é próprio ou não para a minha idade, porque acredito que apropriado para a minha idade é viver!
Aquela professora? Nunca mais vi... e nem senti falta! O que posso dizer dela? Que até os doutores falam bobagens... porque são humanos! Como eu.