A Cadela assanhada

A praça onde nos encontrávamos, ampla, tomada por pessoas passeando, lendo livros diversos ou simplesmente curtindo seus cachorros, que latiam descontraídos, corriam feito crianças sapecas, brincavam ou deitavam na relva e ficavam desfrutando o ventinho gelado circulando intransigente. Bem à nossa frente, a poucos metros, com todo aparato necessário em termos de produção, protegido por um imenso caminhão que servia de cozinha, até mesmo porque um cameramen filmava tudo e as cenas apareciam num telão ao lado, um chef de cozinha argentino muito famoso, autor de livros de culinária, apresentava algumas receitas ao ar livre em prosseguimento ao Festival Gastronômico de Buenos Aires.

Já havíamos recebido das muitas moçoilas do grupo gastronômico ali presente, como parte da publicidade do patrocinador do evento, livrinhos de receitas, broches, pregadores de roupa e chaveiros, tantos que nossa sacola se enchera, procurávamos até fugir delas receando novos "brindes". Estávamos sentados na relva ouvindo o chef e prestando atenção ao movimento em derredor. Eu, por meu turno, observava uma jovem cujo cachorro, enorme e silencioso, deitara-se lânguidamente ao seu lado e observava as idas e vindas dos transeuntes sem qualquer preocupação. O que mais me chamava a atenção era o fato curioso e interessante de uma pequena e frágil cadela ter-se aproximado, toda serelepe, do cachorrão ali deitado e em paz com a vida. Vi que ela brincava com fogo!

É que, toda oferecida, evidentemente excitada, a fogosa cadela aproximava-se do cachorrão, incitava-o com gestos explícitos parecendo chamá-lo para acasalar, saltitava afogueada latindo carinhosa, repentinamente saía correndo como se queimasse sem esperar, em fogo mesmo, ardendo em brasa sim, aturdida com o vulcão explodindo seus sentidos, então circulava em derredor e imediatamente voltava ao assédio como que carcomida de desejo, mais arrebatada pela ansiedade, latia cada vez mais alto, quase pulava sobre o cachorrão talvez a induzí-lo, a convidá-lo, a chamá-lo de sua lerdeza para um delicioso momento a dois, e refazia todos esses movimentos sem parar, elétrica, dominada por um fervor inusitado.

Mas o cãozão apenas a olhava sem qualquer reação apropriada, dava até a firme impressão de não estar gostando nadinha de nada daquele inesperado assédio, assim permanecia deitado em seu lugar, às vezes se virando para o outro lado com vistas a não vê-la ou não sentir seu bafo, vividamente desinteressado na cachorrinha alucinada que tentava excitá-lo, animá-lo,fazê-lo ver o quanto ela tinha de prazer para oferecer, ele não haveria de se decepcionar, e para tanto persistia com suas idas e vindas, suas correrias desenfreadas para lá e para cá, seus imperiosos latidos, seus gestos impudicos, seus insistentes convites. Nada, realmente o macho ou não gostava da matéria ou sabe-se lá o por que de se mostrar tão indiferente à cadelinha debochada.

Isso durou um tempão enquanto ali estivemos. A dona da cadelinha assanhada ria vendo-a protagonizar o mico animal e ser recusada pelo cachorro grandalhão deitado, eu mentalmente anotava tudo para, depois, registrar nessa croniqueta despretensiosa que tem por objetivo o óbvio, isto é, escrever as coisas simples da vida, tão simples, mas tão significativas como o ar respirado, como admirar um por do sol, como comer, beber e dormir. Isso é o pulsar da vida, o latejar da existência dos seres num planeta multifacetado como o nosso.

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 24/10/2011
Código do texto: T3294494
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