Cadê os cavalos?



     Quando, no início do século passado, o primeiro automóvel apareceu nas ruas do Rio de Janeiro, provocou um reboliço daqueles!
     Na bela crônica que acabo de ler, João do Rio, pseudônimo de João Paulo Emílio Cristovão dos Santos Coelho Barreto, é mais um que conta como tudo aconteceu.
     Segundo Paulo Barreto, quando o automóvel, dirigido por José do Patrocínio, trafegou pelas estreitas ruas do Rio de Janeiro, "foi motivo de escandalosa atenção. 
     Gente de guarda-chuva debaixo do braço parava estarrecida como se tivesse visto um bicho de Marte ou aparelho de morte imediata".
     Vale destacar, que a velocidade desse automóvel não ia além de "três quilômetros por hora".
     O indiscutível, porém, é que naquele momento, por uma porta carioca, o Brasil entrava na era do automóvel, hoje, mais do qualquer outra coisa, um objeto desejado e venerado.
     Para os que ainda não sabem quem foi João do Rio, deixo, aqui, uma síntese da sua rica biografia. 
     Ao lado de Euclides da Cunha, ele, além de cronista, tradutor, teatrólogo, foi um dos primeiros repórteres da imprensa brasileira.
     Como excelente e perspicaz jornalista, ele garantia que na rua, " e não nos fundos das redações", estavam os assuntos que, de fato, iteressavam aos leitores.
     Fiel ao seu ponto de vista, ele viveu pelas ruas do acanhado Rio de Janeiro do seu tempo, a procura de casos e coisas que lhe permitissem escrever suas crônicas. 
     Algumas dessas crônicas hoje podem ser lidas em um clássico de nossa literatura intitulado A alma encantora das ruas. 
     João do Rio nasceu no dia 5 de agosto de 1881 e, de infarto, morreu, dentro de um taxi, na noite de São João de 1912, no centro da Cidade Maravilhosa.
     Mas foi muito interessante a entrada do Brasil na era do automóvel. 
     Antes de recontá-la, quero redizer que João do Rio não foi único cronista a registrar como tudo aconteceu, no início do seculo XX, ou, para ser mais preciso, no ano de 1902.
     Outros cronistas e escritores antigos também trataram desse assunto. O mais surpreendente  é que os cronistas e escritores contemporâneos confirmam a versão dada "ao extraordinário fato" pelos cronistas e escritores de antanho.
     O escritor cearense Raimundo de Menezes (1903-1984), por exemplo, in "A vida boêmia de Paula Nei", diz que, voltando de uma viagem a Paris, José do Patrocínio, "ainda na amurada do navio, gritou para os companheiros do cais: "Trago um carro a vapor...o veículo do futuro, meus amigos. Um prodígio!"
     Em seguida, descreveu, nos mínimos detalhes, o funcionamento do primeiro automóvel a rodar nas ruas do Rio, admitindo os pesquisadores, que ele fora o primeiro a rodar no Brasil.
     Recorda Menezes, que Olavo Bilac foi o único dos intelectuais amigos de Patrocínio a aceitar uma carona no automóvel do Tigre da Abolição.
     E para encerrar, Raimundo de Menezes diz, sem arrodeios, o que o destino reservou para o automóvel do Zé do Pato: "O monstro finalmente espatifou-se de encontro a um barranco lá para os lados da Tijuca.      Foi rebocado por dois carros de boi e, anos depois, seus restos serviram para ninho de galinhas." 
Sem dúvida, um triste destino!
     Que essa história é velha, é. Mas, tentando justificar, direi por que me veio a vontade de recontá-la, embora de maneira somítica; bem resumida.
     Vamos lá. Nos meus tempos de sertão, e isso já faz mais de meio século, o cavalo era o transporte mais usado pelos matutos, quando tinham que se deslocar de um lugar para o outro. Mormente se a distância a percorrer fosse de muitas láguas. No lombo de um cavalo machador, menos mal.
     Eu mesmo varei léguas e léguas (não se falava em quilômetros) montado nos cavalinhos mansos que meus amigos fazendeiros me mandavam para que eu os pudesse visitar.
     Saudades da fazenda Morada nova, dos Felipes e da fazenda Monte Alverne, de uma tia paterna, ambas a poucas horas do Iguatu, cidade onde, como já disses várias vezes, vivi minha infância e boa parte de minha adolescência.
     Muito bem. Faz pouco tempo, cortei um pedaço do interior do Ceará, rumo a Canindé, a cidade cearense abençoada por São Francisco de Assis, seu padroeiro. Fui em romaria.
     Meu ônibus atravessava povoados e pequenos lugarejos e eu procurarva, nos alpendres das casas de campo ou na sombra de um frondoso juazeiro, um cavalo à espera de seu dono, por ali por perto tomando uma cachacinha num boteco e querendo saber das últimas.
     Não vi um sequer! No lugar dos cavalos, um sem número de motos e bicicletas, rodando pra lá e pra cá, enchiam os terreiros.
     Fiquei triste! Mas logo caí na real: o sertão entrara, de corpo e alma, na era dos motociclos.
Os cavalos foram substituídos por motos barulhentas. Que, entre outros males, atropelam as lagartixas e assustam as graúnas, sabiás e os canoros canarinhos da terra tirando-os de seus ninhos, com muito amor construídos nos galhos dos paud´arcos e das canafístulas.
     É porovável que a invasão dos ou das motocicletas não tenha provocado "escandalosa atenção" no sertão, como deu-se no Rio de Janeiro, com a chegada do automóvel do Patrocínio. O mundo é outro.
     Mas posso assegurar que os matutos mais velhos têm saudade dos árdegos alazões, e, como eu, vivem a perguntar: Cadê os cavalos?
     Os jovens, não. Estes nunca os viram - como um indispensável meio de transporte - ligando o campo à cidade e a cidade ao campo, por estradas pedregosas, mas enfeitadas por açucenas e cheirando a mufumbo.
      

     
     
     


     
       

Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 23/10/2011
Reeditado em 18/03/2020
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