De nascença

De nascença

(*) Texto de Aparecido Raimundo de Souza

Assim que acaba de tomar o café matinal, Epaminondazinho corre até a lavanderia onde esta sua mãe dando ordens à empregada. Manda a pergunta:

-Mamãe, mamãe, a senhora me leva agora cedo para ver o mar?

A mãe responde de maneira seca, sem ao menos olhar para o guri:

- Não, meu filho...

Na hora do almoço, depois da barriguinha cheia o moleque volta a insistir:

- Mamãe, mamãe, chegou um circo aqui no bairro. Foi armado logo ali na pracinha. A senhora me leva para ver o leão e o elefante?

A mãe continua impassível:

- Não, meu filho...

Dia seguinte a mesma cena se repete:

- Mamãe, mamãe, me leva pra ver o corpo do sujeito que morreu no beco da estação com cinco tiros essa noite?

A resposta da mulher é fulminante e segue o mesmo estouvamento repetitivo:

- Não, meu filho...

Passa algum tempo e o garoto retorna eufórico e sorridente:

- Mamãe, mamãe, a senhora me leva pra ver o novo campo de futebol que acabou de ser inaugurado?

- Não, meu filho...

O pobrezinho sai cabisbaixo e humilhado. Tranca sua solidão no quarto e ali permanece por toda a tarde.

A mãe se condói, finalmente. Penalizada, se sentindo culpada, por só ter dito um monte de não ao filho, resolve ir até ele. Aproveita para levar o prato que mais gosta:

- Posso entrar?

- Sim mamãe!

- Trouxe uma coisa pra você...

- Já sei. Batatinhas fritas!

- Isso mesmo.

- Legal.

- E de lambuja um copo de refrigerante.

- Uau...!

- Epaminondazinho, promete pra mamãe não ficar ai pelos cantos de tromba pra baixo e com a carinha amuada?

- Só se a senhora me levar logo mais a noite na casa do Toninho. Às oito horas da noite...

- O que vai ter lá?

- Ele vai reunir a galera aqui da rua e mostrar o brinquedo novo que acabou de ganhar do pai. A senhora me leva?

Como se fosse movida por um instinto selvagem, a mulher de repente se desposa daquela generosidade espontânea e volta a ser áspera com o filho. Esbraveja:

- Não, esquece...

Novamente o pirralhito se fecha num mutismo impenetrável:

- Não quero as batatinhas...

- Mamãe fez com carinho. Coma!

- Não.

- Tome o refrigerante. Está geladinho, como você gosta.

- Não quero, não quero. Prefiro ir à casa do Toninho.

- Não, filho...

Tudo volta a ser como dantes, no quartel de Abrantes. Domingo à tarde, após o lanche, o piá faz a última tentativa:

- Mamãe, mamãe, me leva no cinema?

- Não, filho.

- Está passando o Sherek.

- Não, filho...

- Mas mãe, eu quero ir no cinema. Todos os meus amigos vão ver o Sherek.

- Já disse que não. Por favor, não insista.

O desditoso, por fim, completamente estropiado, não suporta não aguenta, não tolera mais as infindáveis recusas de sua genitora, como se elas nascessem de uma fome angustiosa de repetição. Sem poder dominar o pranto, calca o seu ressentimento num choro convulso. Implora:

- Me leva mãe. Toda a turma aqui do bairro vai ao cinema pra ver esse filme.

- Não, não, nãooooooooooooooo!... E fim de papo.

- Mãe, eu quero ver o Sherek... Eu quero... Me leva por favor, mãe. Por favor...

A megera explode em fúria incontida. Está possessa, irada, encolerizada. Parte, então, pra cima do moleque e o segura fortemente pelo pescoço aplicando uns bons tabefes pelo meio ao rosto. Grita:

- Para de encher meu saco, seu desgraçado! Não me peça para ir a lugar nenhum. VOCÊ NÃO ESTÁ CANSADO DE SABER QUE É CEGO?

(*) Aparecido Raimundo de Souza, 58 anos é jornalista.

Aparecidoescritor
Enviado por Aparecidoescritor em 22/10/2011
Código do texto: T3290908