Milanês é milanense
Assistindo ao Um milhão na mesa, apresentado por Sílvio Santos, fiquei triste quando a mãe Maria e o filho Deusdete perderam por “não saberem” a designação de quem nasce em Milão. Para eles, a resposta era o improvável milanese ou milanense, a meu juízo bem possível. Afinal, o sufixo -ense é muito comum em gentílicos, como o atestam, entre muitas outras, as formas cretense, porto-alegrense, juiz-forense e são-joanense. Para o gabarito oficial do programa, só valia mesmo a resposta milanês, e lá se foram os dois amargando a perda de seus milhares de reais e o sacrifício de um sonho, ainda que modesto.
Imediatamente, recorri aos dicionários disponíveis, buscando um aval para a resposta dos concorrentes. Nem Aurélio, nem Houassis, nem Aulete abonam a forma milanense. Uma pena! Uma palavra tão portuguesa, tão bem formada, mais sonora até do que o milanês oficial, com que temos mais contato quando nos referimos ao bife à milanesa. Paciência, perderam!
Lembrei-me de visitar, na versão on-line, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), da Academia Brasileira de Letras, que, convenhamos, é (e será) importante material de referência para os dicionaristas. Heureca! Lá, no site da ABL, registram-se, em verbetes diferentes, as formas milanês e milanense, esta última como adjetivo ou substantivo de dois gêneros. Era o que procurava... Cabia, entretanto, encontrar contextos em que o cobiçado milanense aparecesse.
Entrava em cena o Google. De novo, parecia que o destino conspirava contra os concorrentes: há muitos registros de milanense, mas em referência à torcida do Milan, conhecido time italiano da cidade de Milão, e a pergunta do Sílvio era clara: que nome se dá à pessoa que nasce em Milão?
Cabia, então, rastrear exemplos de milanense como sinônimo de milanês. E eles existem. Matéria d’O Globo, em sua versão de 6 de maio de 2011, disponível na internet, começa assim: “Promotores de Milão pediram nesta sexta-feira que o juiz, no comando do julgamento do premier italiano (...)indicie também outros três assessores do primeiro ministro...”. Mais adiante, no mesmo texto, lê-se “O promotor milanense Edmondo Bruti Liberati disse à AP por telefone que ele espera que o juiz marque uma data para uma audiência sobre seu pedido de julgar os três assessores em poucas semanas...” Um belo exemplo de que milanense não é forma inerte no verbete do VOLP.
Ainda n’O Globo, na edição digital de 30 de maio de 2011, registra-se: “Uma pesquisa, divulgada pelo canal de televisão RAI, mostrou que o candidato da esquerda para a prefeitura milanense teria obtido 52% dos votos, contra os 48% da atual prefeita e aliada do premier, Letizia Moratti”. Vejam: prefeitura milanense (de Milão!), assim como dizemos prefeitura porto-alegrense ou cidadão porto-alegrense... Em síntese, Maria e Deusdete estão em boa companhia.
Ato contínuo, fui ao site da emissora e mandei um e-mail, pedindo que se levem em consideração os aspectos aqui mencionados. Estarei certo? Serei ouvido? O tempo dirá...
Imagino que os organizadores do programa tenham um livro ou enciclopédia que lhes sirva de padrão, mas acredito que isso seja perigoso quando se trata das palavras da língua, campo em que todo cuidado é pouco, porque as línguas mudam constantemente e, muitas vezes, duas ou mais formas passam a conviver em variação livre, ou seja, em um dado contexto elas produzem o mesmo significado. É o caso de quatorze e catorze, oiro e ouro, coisa e cousa, projétil e projetil e, a nosso ver, milanês e milanense...
Pelo que expus, permito-me sugerir que em perguntas como essas os questionadores façam uma pesquisa mais ampla. Permito-me, também, sugerir ao Sílvio Santos que enseje nova oportunidade aos participantes... Vai ser bom para eles, vai ser bom para o SBT, uma tevê cuja marca registrada é a felicidade por distribuir prêmios.
Se não me engano, no início do programa, dona Maria disse que foi buscar no lixo a embalagem do produto que a levou à tevê. Ela merecia que a sorte a amparasse um pouco mais... A minha parte está feita.