Aguardando

Deitado numa cama macia, num quarto de paredes dolorosamente brancas, olhando para uma televisão mequetrefe num suporte preso alto na parede, fico gozando duma constante dor e uma excruciante espera.

O pinga-pinga do líquido transparente numa sacola plástica do qual sai um tubo que encontra-se preso ao meu braço irrita-me mais do que julgaria possível, mais até do que aguardar impotente, atado à uma cama entre lençóis alvos quase que esterilizados. Troco de canal sem encontrar algo particularmente interessante, largo o controle, que parece feito de chumbo maciço, na mesinha à minha esquerda, ao seu lado repousa outro controle, este o do videogame que meu irmão deixou para mim em sua última visita.

“- Você já melhora, e aí vai lá pra casa passar um tempo com teu sobrinho, que não para de perguntar de você.

-Uhum, e vou começar a cagar dinheiro e casar com a Angelina Jolie – sorrio cansado –brincadeira, avisa o moleque que logo logo estarei lá.”

Foi o último diálogo que tive com ele, lembro desse filho e tento imaginar como ele será quando grande, afundo no travesseiro fofo e numa tristeza dura como concreto. A moça na TV diz que choverá amanhã, olha para o teto branco como cal e penso como seria maravilhoso um banho de chuva, como os que tomava quando criança; um último que fosse. Tento bolar um mirabolante esquema para escapar deste lugar e banhar-me sob as goteiras do firmamento; movo o braço e sinto uma pontada onde a agulha que abre caminha até uma veia minha está, penso que seria realmente complicado fugir de avental com o traseiro de fora, de qualquer modo.

Abandono meus grandiosos planos de fuga e atento-me à maçante tarefa de buscar algo que preste na programação televisionada. Largo a transmissão num desenho animado que carrega consigo uma terrível crise de saudosismo; de todas as coisas que imaginei para meu futuro, esta certamente não era uma delas.

Passa-se um dia, ou dois, imerso em doses ultrajante de analgésicos, contra minha vontade, acabo por perder-me nas contas. A loira diz que amanhã, como hoje, fará sol “Perdi minha chuva”, penso cabisbaixo; e todo o resto. Depois do meu almoço, um copo de água e um refil do irritante saquinho que pinga, uma enfermeira gorducha, nada como ela seria em meus sonhos de estadia forçada num hospital, avisa que tenho visitas, sorrio contento enquanto peço que permita-as a entrada.

Quatro pessoas que tentam disfarçar o que sentem de diversas maneiras, um olhar para alguma coisa, um sorriso falso, um tropeço de mentira no tapete, passam pela porta, duas de cada sexo. Dois sei que vieram por afeto, uma no máximo por obrigação, e outra que achei que jamais viria.

-Achei que não vinham –digo com uma voz pateticamente fraca – bom que vieram.

-Até parece –diz-me o mais alto – só não deu pra vir antes.

-Sei, mas é bom do mesmo jeito.

Vejo em quatro pares de olhos a mesma mistura de pena e indecisão quanto ao que dizer. Acabo com o silêncio dirigindo-me ao homem mais baixo dos dois:

-E aí, leu aquele último lá?

Não sem hesitar ele responde.

-Ainda não deu tempo.

Sorrio um meio sorriso carregado de dor antes de responder:

-Porra, e com quem eu vou falar sobre ele desse jeito?

Ele me olha como um idiota sem graça, buscando algo para dizer que não seja deselegante, na falta de algo melhor:

-E aí, como cê tá?

-Maravilha, se melhorar estraga, só não troco de lugar contigo pra ficar com tudo isso só pra mim.

Dou uma risadinha, quando há pouco antes daria uma gargalhada de tremer as paredes, e recebo falsos sorrisos, aquela, que veio só para poder dizer “Fui lá ver ele, viu como sou uma boa pessoa?”, indaga:

-Tem alguma coisa que a gente possa fazer?

Faço cara de pensativo, que deve parecer uma expressão de agonia, visto que um deles apressa-se em ir buscar a enfermeira balofa, com um gesto peço para que não o faça e digo:

-Eu queria uma cerveja, uma fatia de costela pingando gordura e um boquete; quem vai fazer o que vocês que decidam.

Agora o riso é sincero, ainda que misturado com certo embaraço por nascer em frente a um moribundo. O riso que me alegrara parece tão pouco comparado ao pesar que cresce em meu peito ao vê-los encarar-me como se fosse um coelho com a pata presa numa armadilha, digno de pena.

Perguntam-me se quero que virem a cama para que veja o sol, digo que não sou nenhum velho débil mental e lembro-me de como ele é. Peço perdão pela grosseria bem como uns momentos a sós com a presença inesperada em meu leito, do mesmo modo que o faço, com sincero carinho, para que não vão embora sem despedirem-se. Eles aquiescem, ela fica.

Um dos momentos mais desconcertantes de minha desenrola-se enquanto a encaro em busca de palavras, resolvo falar sem pensar:

-Não achei mesmo que você viesse.

-Não vinha – responde fazendo um beiço sobre o qual poderia tropeçar.

-Se veio por obrigação, considere-a realizada e pode ir.

Sei o tamanho da burrada que disse ao ver a expressão em seu rosto, falo antes que ela vá e leve consigo a derradeira chance de falar-lhe:

-Nunca quis te magoar – levanto uma mão em sua direção num esforço que seria teatral, não fosse verdadeiro – nunca.

Relutante ela a pega com uma das suas, exatamente no momento em que faltariam-me forças para mantê-la erguida.

-Mas magoou.

-Muito, e me dói mais do que aquilo que me prendeu nesta cama, saber que o fiz.

-Eu te amei.

-Eu te amo.

Vejo-a enfurecer-se.

-Cala a boca! – sai por entre um choro contido.

-Desculpe.

Uma lágrima corre seu rosto contorcido por uma raiva indesejadamente mesclada com antigo afeto e tristeza por ver-me como estou. Continuo:

-Só espero que um dia me perdoe, não por isto tudo, por entender que sempre fui sincero.

-Não sei se consigo.

Resignado respondo:

-Entendo, um quase sorriso brota cansado em meu rosto – só queria que saiba que você é a última pessoa no mundo que eu queria ferir.

Numa atraente teimosia ela diz:

-Mas feriu.

-Eu sei...

Perco-me numa agonia que me rasga de cabo a rabo, lembro de ouvir gritos alarmados, de tossir e engasgar com sangue, que se acumulava em minha garganta, lembro de uma bem vinda escuridão.

Volto à consciência não sei quanto tempo depois, ouço o enervante pinga-pinga do saquinho com etiqueta com as informações daquilo que me é injetado, e perco-me em memórias. Dum amigo que me visitou e sorriu triste, da mão que velou num carinhoso silêncio, do pai que apertou minha mão e tinha mais o que fazer, do irmão que iluminou o dia com um sorriso.

Tudo se perde quando fecho os olhos e exausto entrego-me para um escuro que sufoca.

Pietro Tyszka
Enviado por Pietro Tyszka em 20/10/2011
Código do texto: T3288008
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