CULTURA AO QUILO
Conta Luís de Oliveira Martins, que certa vez o genial Camilo esbarrou, na Praça Nova, com negociante seu conhecido, sobraçando numerosos livros.
Admirado que o comerciante andasse com tantos livros, disse-lhe o escritor:
- Quantos livros você leva consigo! ….
- São para meu filho, que anda a estudar. - Respondeu, enfatuado, o comerciante. - São quatro quilos de sabedoria! - Concluiu o homem com sorriso de orgulho bailando nos lábios.
Ao que Camilo, prontamente, retorquiu:
- Veja lá se lhe roubaram no peso! ….
Esta historieta, quase anedótica, ocorrida entre o escritor e o lojista da praça portuense, lembrou-me outra, que presenciei em menino, na livraria de amigo de meu pai.
Certa ocasião o Dr. Saraiva, homem bom e temente a Deus, instou meu pai a visitar sua casa, pois queria mostrar-lhe a biblioteca.
Espicaçado pela curiosidade, ainda que contrafeito, acedeu; e numa manhã de domingo, após a missa, bateu ao ferrolho do antigo e sombrio prédio dos Saraivas.
Prontamente apareceu o dono da casa e alegremente conduziu-nos à famosa livraria; antes, porem, passamos por saleta, onde montara posto de radioamador.
Ligada a aparelhagem, soltou-se infernal chiadeira, chinfrim de ruídos graves e agudos, que este vosso criado, que acompanhava o senhor, seu pai, não encontrou outro remédio, senão servir-se das mãos, como tampões.
Mas isso é o menos.
Prestes passamos à biblioteca. O Dr. Saraiva escancarou as janelas, e jorrou sobre os armários envidraçados, que forravam as paredes, alegre e fresco sol matinal.
Seguiu-se a apresentação dos volumes:
- Aqui está a obra completa de Eça e Camilo; algumas são primeiras edições; a enciclopédia Luso-brasileira, a Britânica e o Larousse; os livros de Economia, História, Direito e Medicina, encontram-se naquele armário. Enfim, uma biblioteca de milhares e milhares de volumes! … - Rematou orgulhoso o Dr. Saraiva.
Meu pai olhava pasmado para tanta “cultura”; observava os livros vestidos a pele genuína, cobertos a letras doiradas, que pareciam acabados de sair do encadernador.
Então o Dr. Saraiva, querendo deslumbrar-nos, abriu a porta envidraçada de uma estante e retirou preciso livro, ricamente encadernado a meio-amador, e disse:
- Veja que beleza! …
Meu pai abriu a obra, que era de Florbela Espanca. Estava em branco! Tornou a abrir…e sempre folhas em branco!
-Abra ao meio! …Abra ao meio! … - Insistia o Dr. Saraiva. - Como era muito fininho, mandei encadernar com folhas em branco. Sempre fica mais bonito na estante.
Tanto o lojista de Camilo, que media a cultura ao quilo, como o Dr. Saraiva, que, como Jacinto, do Eça, tinha milhares de volumes que nunca lera, pensavam que a cultura resumia-se na abundância de livros.
Como eles, quantos não adquirem livros só para dizerem que possuem a obra completa de ***, ou a Bíblia ilustrada de Doré?! Compram “cultura”, a metro, para enfeitar estantes.
E o homem comum, vendo tanta abundância de livro, dialoga com os seus botões:
- Que homem culto é este senhor doutor! …