Dois Tempos
Embarquei em um ônibus intermunicipal lotado e a viagem foi interminável. As pessoas se espremiam e roçavam uma as outras. Viajei lentamente no tempo e desembarquei em meados dos anos 2198. Acordei assustado, atônito, mas tudo estava na santa paz. Minha barba havia crescido imprudentemente e eu usava botinas nos pés e mochila às costas. Fazia um calor danado. O ônibus que eu embarcara era agora uma aeronave que voava baixo, mas mesmo assim pegava engarrafamentos longínquos. Era uma aeronave de luzes azuis e douradas. Uma televisão de 102 polegadas, que flutuava no ar, não parava de reprisar o julgamento dos responsáveis pelo mensalão, aqueles do dinheiro na cueca, lá pelos idos do início do século. Escândalo! Todos estavam encarcerados, mas José Sarney ainda era o presidente do Senado. Um tal de Marco Valério pegara 269 anos de prisão. Ricardo Teixeira, depois de uma Copa do Mundo trilionária, com desvio de verbas públicas e tudo mais, ainda era o presidente da CBF. Ele e o seu Josef Blater, da FIFA. O Galvão Bueno narrava os jogos da seleção brasileira, e exaltava heróis garotos de cabelo moicano. Puxei a cordinha e desci.
Numa praça pública com árvores robustas verdes como limo, arfante, triunfante, em cima de um esplendor de mastro, discursava para um aglomerado de 50 pessoas, todos estudantes de universidades federais, um rapaz de fuzil a tiracolo e voz grossa. Era Leonel Brizola, convocando o povaréu gaúcho a se voltar contra a corrupção. O comunismo e o anarquismo eram os partidos da vez, e Karl Marx era o presidente da república riograndense. Havia ideologia e os partidos eram ou de direita, ou de esquerda.
Eu caminhava e não encontrava pessoas a dormir em ruas, e havia muita gente trabalhando. Eram trabalhadores gritantes, ativos, pueris. O proletário não se deixava esmorecer por burgueses. Não havia miséria e nem dor. Havia hospitais e escolas. O Grêmio Futebol Porto Alegrense conquistara sua septagésima copa libertadores (Uau!), e o internacional, coitado, havia decretado falência, logo após o retorno do herói Gabirú e do beira rio afundar no rio Guaíba. A cidade era limpa como o mar e os rios e o céu. Larissa Riquelme torcia para o Paraguai com seu celular despeitado, e o Paraguai, com isso, tornou-se campeão mundial. A cidade era tomada por artistas e intelectuais. Avistei Mário Quintana na sacada do hotel que ainda morava, ele e um tal de Carlos Drummond. Num bar entrei, e lá estavam Chico Buarque, Tom Jobim, Vinícius de Moraes e Toquinho a beber wisky e a fumar charuto. No banco do lado de fora me deparei com Ferreira Gullar, magro, esguio, pernas cruzadas, a contemplar a costa do rio Guaíba.
O ar que inspirava era só poesia!
Num susto acordei, babado e adormecido. O ônibus velho caíra em um buraco no asfalto. Era sonho, e eu continuo a sonhar acordado.