O CÃO NA AVENIDA

Em Buenos Aires topamos com cachorros de todas as raças a cada dois metros e por onde quer que andemos, ali uns fazendo cocô pelos cantos sob o olhar complacente de seus donos e donas, acolá outros marcando território por de passam, adiante são os passeadores de cães que os arrastam ruas afora enquanto eles vão deixando pelo caminho um rastro de sujeira e latidos. Madames, senhores idosos, jovens, todos tem o seu cachorrinho de estimação, e quando digo cachorrinho não estou afirmando que eles são necessariamente pequeninos. Alguns são e fazem um barulho desgraçado com seus latidos absurdos, mas há também os grandalhões calados e de olhar penetrante e atemorizante. Percebi, no entanto, que os esses animais em Buenos Aires parecem ter uma certa educação social capaz de fazê-los passar pelas pessoas, sejam eles pequenos ou enormes, sem prestar a menor atenção, indiferentes ao vai e vem dos transeuntes, eles como se fossem isso da mesma forma. Atravessam nossos passos, quase a nos atropelar, porém firmes e decididos em seus destinos, dando a impressão de seres humanos que, por alguma razão não estabelecida, se tornaram quadrúpedes da noite para o dia.

Portanto, não é nada anormal topar, subitamente, com um desses bichos enormes e ameaçadores circulando circunspectos em meio ao povo, seja no comércio, nas ruas, nas calçadas, em todos os lugares afinal de contas. Eles, na verdade, estão em toda parte e compõem a geografia demográfica portenha. Eu, todavia, apesar de já conhecer bastante essa cidade onde o cigarro, o cachorro e o livro são as três maiores paixões argentinas, sempre me surpreendo com esses fatores interessantes, dos quais somente o livro me é deveras caro. Deparar com um cachorrão em plena avenida, portanto, que de maneira repentina se mete entre suas pernas na maior tranquilidade, farejando e querendo fazer amizade, assusta e deixa qualquer vivente de cabelos em pé.

Pois foi justamente esse fato que se deu comigo em plena Avenida Córdoba, numa manhã ensolarada e brilhante em que andávamos à toa, gastando o tempo. Lá íamos eu e minha mulher na maior calma desse mundo deitando a vista sobre as vitrines e os preços dos outlets, conversando e rindo de qualquer coisa, de qualquer frase de algum argentino, agitando enfim nosso coração com as novidades de estarmos em outro país. Assim, distraídos e inocentes, não demos conta da aproximação do monstro. Logo eu que não morro muito de amores por cachorros, quando súbito comecei a sentir algo roçando minha perna, olhei. E fiquei estarrecido. Era como se estivesse vendo ali ao meu lado, junto de mim mesmo, um novilho me farejando. Pois se tratava, na verdade, do cãozão cuja cabeçorra lembrava uma bola de futebol. Tamanho foi meu espanto que, mais do que eu o demonstrava na expressão facial, o bicho assustou-se ante minha reação e gesto instintivo de afastar-me a ponto de saltar para o lado e permitir-me, a mim puxando minha esposa, entrar na primeira loja mais próxima enquanto o animal me olhava de longe como se ele tivesse visto o inesperado.

O cachorro ainda ficou por ali, como se à minha espera não para machucar-me, penso, mas para expressar sua "educada" intenção de fazer amizade comigo - talvez. O dono da loja viu o acontecido e, sorrindo, tranquilizou-me afirmando que não havia perigo nenhum porque o animal costumava ficar sempre naquela avenida passeando e "fazendo amizade" com as pessoas. Eu consegui sorrir meio amarelo diante dessa assertiva e saí da loja depois que o cachorro se foi vagaroso à procura de novos turistas a quem chamar de "amigo". Desde que não fosse eu, ufa!

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 19/10/2011
Reeditado em 19/10/2011
Código do texto: T3285842
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