Um rio e uma árvore

     
Nasci no pequenino Cariús, uma simpática cidadezinha, lá nos confins do sertão cearense, ribeirinha de um grande rio. Nasci às margens do rio Jaguaribe.
     Resistindo, bravamente, às repetidas e mais cruéis secas, o Jaguaribe é, por isso mesmo, considerado (ou já foi?) o maior rio seco do mundo.
     Mas quando o inverno é bom, ele ressurge glorioso das entranhas de sua cabeceira, e, em pouco tempo, transborda.
     E-pasmem!- da noite para o dia, dá-se o "milagre": nas suas águas barrentas aparecem, aos milhares, as curimatãs, o peixe de água doce mais saboroso, garantem os pescadores que povoam suas ribanceiras.
     Era, me lembro muito bem, o peixe predileto dos meus pais. 
     Faz um tempão que não vejo o meu Jaguaribe; nem seco, nem cheio. 
     Nele, posso dizer, reside boa parte de minhas reminiscências de infância. Nele nadei, nele tomei banho nu, quase me afoguei, e comi o feijão e o arroz das roças adubadas pela sua correnteza, na sua passagem, a caminho do mar.
     Recordo-o, entretanto, quando releio o poema que o  combativo jornalista Demócrito Rocha dedicou-lhe, e que traz estes versos: 

     "O rio Jaguaribe é uma artéria aberta
     por onde escorre
     e se perde
     o sangue do Ceará.
     O mar não se tinge de vermelho
     porque o sangue do Ceará é azul."

     Demócrito Rocha (1883-1943), filho da Bahia, foi um dos mais brilhantes e destemidos jornalistas do Ceará. 
     No seu poema, deixa claro sua preocupação com o desperdício das águas do Jaguaribe, que corria para sua foz, depois de, inutilmente, percorrer 610 km em território alencarino. 
     Anos depois, o generoso Jaguaribe ajudou, decisivamente, na formação de dois grandes e importantes açudes: o de Orós e o do Castanhão.
     Pois não é que um parente me mandou, de Iguatu, cidade onde vivi praticamente toda a minha infância, uma foto do Jaguaribe. Nas suas cheias, a principal atração e a permanente preocupação dos iguatuenses.
     Com uma letra trêmula, denunciando o peso de sua idade, ele escreveu: "Para você matar a saudade dos nossos mergulhos".
     É, pelos cálculos que andei fazendo, nada menos de setenta anos me separam do meu último banho nas águas do Jaguaribe.
     Olhei para a foto, e mergulhei num passado que só me faz morrer... de saudade do rio da minha infância.
                    ***  ***  **
     A árvore? Não é o pau d´arco, não é o flambuaiã, não é o cajueiro. É o juazeiro.
     Nos meus tempos de sertão, foram muitos os juazeiros que me acolheram sob sua sombra amiga e refrescante.
     Na estiagem mais impiedosa, quando o sol se mostrava desumano, lá estava ele, verdinho, como buquês de esmeraldas soltos na amplidão da terra tostada, numa solidariedade comovente. 
     A espera de alguém?
     Planta típica da caatinga, xerófila, o juazeiro tem um porte elegante. Não cresce mais do que 10, 15 metros.  Em compensação, é uma árvore longeva: vive 100 anos!
     Também não nasce um ao lado do outro; um agarrado no outro. É uma árvore solitária.
     Talvez para melhor acolher, no aconchego de sua fronde, um mancebo apaixonado.
     Como aquele do baião do Luiz Gonzaga (1912-1989) e Humberto Teixeira (1915-1979), cuja companheira deixou seu nome gravado no tronco de um juazeiro confidente, junto ao dela...

     "Juazeiro, juazeiro,
     Me arresponde, por favor
     Juazeiro, velho amigo
     Onde anda o meu amor."

      E mais adiante:

     "Juazeiro, meu destino
     Tá ligado junto ao teu!
     No teu tronco tem dois nomes
     Ela mesmo é que escreveu."

     Escrevendo sobre a vida do velho Lua (apelido que lhe foi dado por Paulo Gracindo), Dominique Dreyfus lembra que gringos, impressionados com a beleza da música do baião juazeiro, tentaram se apropriar de sua melodia.
     Ousados, os compositores norte-americanos Harold Steves e Irving Taylor, dizendo-se seus autores, "botaram letra em inglês na melodia", dando-lhe este título: Wandering Swallouw, afirma  Dreuyfus.
     A reação foi imediata: o advogado Humberto Teixeira, parceiro do Gonzaga na canção, processou os gringos , obrigando  a gravadora a tirar o disco de circulação.
     Bem que eu gostaria de ter nos meus arquivos uma cópia dessa polêmica gravação.
     Foi um pouquinho da história dessa festejada canção, sucesso  absoluto, desde 1948, quando Humberto e Gonzaga a colocaram na praça.

                    ***   ***   ***
     Mas o que eu quis, aqui, foi homenagear o juazeiro, planta-símbolo do meu nordeste, cantada em versos e prosas por escritores e poetas cearenses.
     Porque, a exemplo do meu Jaguaribe, seus galhos, suas flores, seus frutos, sua amizade, devolvem-me à infância longínqua, quando, "pés descalços e braços nus",  vivi a beleza de um sertão feliz...
     Ah! Mas isso foi na decada de 1940. 



Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 18/10/2011
Reeditado em 26/10/2011
Código do texto: T3284662