Gente de cinema

Descobri, meio por acaso, que o problema da vida é que os cabelos se despenteiam. Dá um trabalho danado acordar e colocar o cabelo daquele jeito que só a gente mesmo sabe como é, e um ventinho qualquer entra por baixo de um fio mais fora de lugar e folheia as madeixas como a um livro. Gente de cinema que é feliz. Lá os cabelos não se mexem, não importa a acrobacia ou a peripécia. Pode-se saltar do avião, entrar na água, jantar ou acabar de acordar, que tem-se o mesmo olhar de quem acabou de sair do salão. Aqui fora não. Aqui fora o cabelo despenteia.

A Rachel de Queiroz me falou* que ela tinha no nordeste um lugar especial para fugir, rever a vida, lamber as feridas e voltar recarregada. Tudo que eu queria era um mundo desses para mim. É demais pedir um mundo só meu? Tenho lá meu videogame, minhas caixinhas de nada, minhas cavernas, figuradas e literais, mas nenhum deles está à mão quando se precisa. Até para fugir dá trabalho, tem que fazer mala e reservar com antecedência. Tem que ser espontâneo com um mês de antecedência e organizar tudo. Por aqui, o cabelo despenteia.

Se eu fosse gente de cinema, ia dar certo da minha filhinha falar com meu chefe. Ela ia abrir a porta de supetão, colocar a mão na cintura, apontar o dedinho e fazer um discurso tão bonito que ele ia me chamar, pedir desculpa e, de quebra, dar uma bicicleta nova para ela. Mas eu tive que explicar que não é assim que as coisas acontecem, que bicicleta não é coisa que se compra todo dia e que chefe não é bem gente igual a gente. Ele é a empresa na roupa de pessoa e tem poder para fazer a gente ficar triste. Ele é igual gente de cinema, que não chora e nem perde. Mas por aqui, o cabelo despenteia.

*Na crônica “Terra no sangue”