Almoço
- Onde você almoçou hoje?
A pergunta entrou na minha vida assim, sem maiores intenções, dita entre palavras soltas, quase nas entrelinhas, de forma casual, mais para manter a conversa rolando do que para realizar uma investigação completa, com direito à perícia de seriado americano. Onde almocei? Ora, almocei no... branco total, vácuo. Onde almocei? A mente emite um zumbido agudo de televisão antiga desligando. Onde almocei? Um grilo canta em algum canto, no escuro.
Ciente de que meu titubeio seria dificilmente justificado como uma forte e súbita amnésia sobre meus recentes hábitos alimentares, começo a suar. Consciente de que o suor só piora o meu problema, começo a entrar em pânico, o que costuma prejudicar substancialmente minha memória. Pensei em oferecer uma longa explanação sobre o que significa círculo vicioso e sobre a primeira utilização da expressão na matemática por Henri Poincaré nas definições impredicativas, mas não adiantaria mudar de assunto. Como eu posso me lembrar de Poincaré, inclusive de acentuar o sotaque francês para pronunciar seu nome, mas me perco quando se trata do meu almoço?
Meu cérebro, provavelmente abalado pelo pânico instalado, começou a se entregar a divagações. “Foco, foco”, digo para mim mesmo. “Verde”, meu almoço tinha algo a ver com verde. Seria alguma salada que comi? Improvável. Talvez tenha ido a um restaurante de parede verde. Percebo que não consigo me lembrar das paredes dos restaurantes que frequento. Lembro de algumas fotos preto em branco que mostram cenas de Nova York. As fotos são realmente muito bonitas. Por que temos mania de traduzir o nome de New York para Nova York? O que acharíamos se um americano dissesse para outro que esteve em January River, ou em Saint Paul? “Foco, foco”, repito novamente. Onde eu almocei? Meu olho direito começa a piscar involuntariamente.
“A gravata!”, me lembro de supetão. Por ser um desastrado incorrigível, minha gravata costuma conter registros arqueológicos de minhas últimas refeições. Dissimuladamente, começo a analisá-la. Um ponto marrom me chama atenção, analiso com esperança. Infelizmente é uma gota de café, provavelmente do café da manhã. Mas então, minha atenção é atraída para uma pequena mancha disforme de uma cor indefinida, ao lado de um leve risco deixado pela pasta de dentes. Qual a cor dessa mancha? Lembro que sou daltônico e quase irrompo em um choro desesperado, mas percebo manchas semelhantes na camisa, uma de cada lado da gravata, cerca de dois centímetros abaixo. Como por mágica, a cena de uma azeitona caindo do garfo sobre um prato cheio de molho à bolonhesa me vem à mente. Macarronada! Eu comi macarronada!
- Comi um macarrão lá no restaurante do Jorge.
- Ah, não gosto de lá. Tudo é verde e escuro... por que você está suando?
- Eu? Suando? Nada... - e casualmente completo - Adoro essa gravata.