Funesto diálogo
Esses dias tive uma conversa interessante; em meio a tosses ardidas que borrifavam tantinhos de sangue, e engasgos dolorosos frutos duma dolorosa revolta estomacal, surgiu em minha frente uma bela dama de olhos frios. Ainda resfolegando entre tossidas que arranham, meio que digo, meio que escarro:
-Que porra...?
Com uma voz cálida como brisa de verão a aparição responde:
-Sou a Morte, e minhas sinceras desculpas, você é meu.
-Demorou hein?
Os olhos de gelo fitam-me duvidosos:
-Como assim? Não vai espernear, chorar, pedir mísero minutinho que seja?
Gargalho incoerentemente e continuo falando como um idiota:
-Desculpa.
-Qual a graça?
-Pra começo de conversa, posso dizer que ri na cara da Morte, como tantos dizem que fariam. Isso acontece muito?
-Está tentando me enrolar e conseguir mais tempo?
-De modo algum – tusso mais um tanto, limpo o sangue das costas da mão na calça – tava só curioso, mas vamos nessa, me leva duma vez.
Vejo-a ponderar uns três segundos antes de tornar a formar palavras com aquela voz adocicada:
-Quase nunca, riem nervosos, histéricos, para esconder o medo, mas assim como fez, poderia contar nos dedos.
-Ah tá, imaginei.
-E o quê mais?
-Hein?
Um suspiro irritado e ela prossegue:
-Você disse “Pra começo de conversa...”
-Ah é, porque diabo eu ia te pedir mais um minutinho, se eu já te aguardo ansioso há tantos sem conta?
Ela mastiga mentalmente a informação por um pouco, bem mais do que julguei necessário para o que me disse em seguida:
-Por quê?
-Porque a vida é uma merda.
Agora mais rapidamente:
- E por que não se matou? Já busquei vários em frangalhos que fizeram isso; reclama da vida mas não tem coragem de terminá-la?
-E quem disse que não o fiz?
É sua vez de olhar-me embasbacada, continuo.
-Só escolhi um meio muito mais demorado de fazê-lo.
Uma faísca de compreensão brilha em seu olhar até então opaco.
-Toda aquela bebida, a falta de cuidado e todo o resto?
-Não, apenas decidi viver.
Sorrio deveras maroto antes de concluir:
-Quer modo mais lento de morrer?
-Juro que não entendo como um ser humano pode ver a vida de modo tão equivocado.
-Agora eu que pergunto, por quê?
-Pois ela é tão bela.
Rio alto até convulsionar tossindo.
-Só pensa assim, pois está fadada apenas a tirá-la, jamais vivê-la.
Ela fica um tanto emburrada.
-Ora, nada sabe sobre a vida fora tomá-la, não seja hipócrita de dizer o contrário.
Não tenho certeza se é tristeza que nubla seu já apático semblante, mas é o que me parece.
-Isso não é justo – diz-me chorosa- jamais desejei ser carrasca.
-Calma, era brincadeira – nunca me imaginei confortando a Megera da foice – é que sinceramente, a morte falando sobre a vida é pra lá de cômico.
Ergo a mão para tentar apaziguá-la, mal a aproximo e um frio como jamais senti corre meu braço. Ela dá um passa para trás bem como me dá as costas, vejo que abraça a si mesma. Viro para a parede, mas para encostar um braço nela e minha cabeça nele, enquanto olhando para os pés, tento sufocar uma ânsia atroz que me rasga as entranhas.
Ainda afagando a barriga em chamas ouço-a outra vez, e dou meio volta para encará-la.
-Você é que não conhece nada da vida.
-Sei o suficiente, sei que finalmente chegou ao fim e por isso sou-lhe grato dum modo que jamais fui.
Vendo-a sorrir congelo perdido em pavor, algo terrivelmente antigo e odioso transparece por detrás daquele ato.
-Ah, ia chegar ao fim, não chegará mais, ao menos por um tempo.
Sorrio incrédulo.
-Para de falar merda, você está aqui, tossi meio litro de sangue, sinto mais outro tanto revolvendo em meu estômago, é hora, já vivi mais do que poderia suportar.
Seu sorriso indescritivelmente assustador se alarga.
-Ah, viverá sim, por quanto tempo eu quiser, até aprender o que há de bom no viver, ou eu cansar-me de vê-lo debater-se com ele.
-Não pode fazer isso! –Exclamo histérico.
-Ora, acredita você, que pode dizer-me o que posso ou não fazer? Que pode retribuir com troça a gentileza que fiz em vir buscar-lhe com carinho pela mão? Queria chegar ao outro lado podendo dizer que brincou com a Senhora do Fim dos Homens, que riu dela como o bravo homenzinho que é?
Apavorado além de qualquer medida respondo em desespero:
-Não era minha intenção, jamais quis ferir-lhe ou divertir-me às suas custas, perdoa-me, perdoa-me e me leva junto.
A voz, antes duma doçura refrescante tornou-se gélida como uma nevasca no inverno:
-Agora é tarde, fica aí, que agora quem irá troçar sou eu, e caso pense que não irá escutar-me nesse prolongamento de vida, saiba que cada respiração sua, será um gargalhar meu.
Tão inesperada quanto sua aparição foi seu sumiço. Irado berro a plenos pulmões:
-Puta! Megera! Volta!
Um novo acesso de tosse põe-me de joelhos. Numa patética lamúria:
-Eu imploro...
Mas não há qualquer sombra de resposta. Apenas tusso mais um pouco e percebo que desta vez consegui. Irritei a Única que poderia livrar-me ao ponto dela largar-me preso à uma vida que corrói; ficando agora sem qualquer chance de escapar.