DA UTILIDADE DA TV
Um antigo professor de Filosofia, antigo porque já faz tempo o acontecido, mas ele era um jovem professor. Um jovem doutor em Humanidade e Humildade – porque há ainda a modalidade de doutores em Vaidade Intelectual e Arrogância! Bem, o professor Marcelo, pessoa da gema, ficou marcado em minha memória afetiva por suas peculiaridades de gente.
Vou tomar a liberdade de recordá-lo um pouco mais... Era um tipo comum, beirando a anormalidade de ser comum. Sempre tranqüilo, sorriso no rosto, sotaque carregado, uma disponibilidade constante para ajudar. Enquanto ministrava suas aulas, punha as mãos nos bolsos e começava a andar pela sala, ora para a frente e para trás – como que numa dança exótica – ora de um lado para o outro. E eu, nesse frenesi, quase ficando tonta. Imaginem a cena: Um pouco de Nietzsche e... pra lá e pra cá, um pouco de Schopenhauer e... pra lá e pra cá, um pouco de Kant e... você já sabe... Não há cabeça para se manter em órbita. A minha, inúmeras vezes, visitou outras galáxias.
Mas o professor da gema era assim, e todos o adoravam. Em uma dessas suas aulas giratórias, enquanto percorria toda a sala como se fosse um autômato, mas só como se fosse... ele resolveu nos falar sobre tecnologia. Definiu-a como a extensão do corpo humano, produzida, a princípio, exclusivamente a fim de ampliar as potencialidades do homem, facilitando-lhe de alguma forma o labor. Desse modo, ao criar os seus artefatos mais rudimentares durante a pré-história, o Australopithecus legava ao Homo Sapiens, mesmo sem saber, o advento tecnológico.
Um pouco de conhecimento sobre a psicologia e os processos de formação da mente humana nos basta para compreender que foi justamente a interação do homem em seus grupos e com o meio (incluindo aí o trabalho e suas relações) que transformou o humano nesse ser complexo, inteligente, criativo, evoluído – salvo não raras exceções!
De lá pra cá, foi tanta tecnologia criada para ampliar pessoas que não se pode mais enumerar. Pense nos óculos como extensão dos seus olhos, nos talheres como extensão das suas mãos... Eu penso em minha máquina de lavar, extensão do meu corpo inteiro... Há umas coisas que eu não consigo entender o que, de fato, ampliam, é o caso de sons com caixas de trio elétrico que certas pessoas, aquelas exceções, colocam em seus automóveis. Não ampliam nada! Aliás, ampliam sim: ampliam a tolerância de pobres mortais obrigados a compartilhar do mau gosto alheio.
Hoje quando me sentei em frente ao papel com uma ideia na cabeça e caneta na mão, pensava, na verdade, sobre um desses inventos maravilhosos, a televisão! Minha relação com ela ultimamente anda assim, assim...
Quando estou bem tranqüila e me sento em frente ao aparelho, experimento o exercício místico de transmigração da alma... Olhos fixos, corpo imóvel, cabeça girando o mundo. Não me perguntem o que se passa na tela, ficaria embaraçada em não saber responder... Vôo longe, muito longe e fujo de tamanha redundância!
Se estou num daqueles dias em que melhor seria nem ter saído da cama, aquele turbilhão de informações fúteis, grotescas, macabras, perversas, distorcidas, apelativas e tendenciosas acabam por me fazer repelir o objeto. Caso não possa desligar, fujo mesmo! E é nessas fugas, sejam físicas ou transcendentais que encontro enfim alguma utilidade para a TV... Quando me distancio, com o corpo ou com a alma é que me apaixono pelas idéias, dou asas à imaginação e, assim como agora , traço-as do papel a quem possa se interessar. Se não há nada de útil nisso? Para mim, há sim... nesses momentos me encontro comigo mesma.