O Afogamento
Filha de família muito pobre, Teodósia mal teve infância. Desde os sete anos já ajudava os pais e os quatro irmãos no duro trabalho de sol a sol na roça. Isso até o dia em que uma senhora da cidade chegou de carrão, fazendo contato com o povo simples da vila, buscando uma criada para sua casa. Teodósia foi indicada e, com a concordância plena dos pais (já que a senhora se comprometia a pôr a menina, de 13 anos, num colégio), acabou aceitando sem pensar duas vezes. Jamais se colocara contra alguma decisão de seus pais, principalmente de seu velho e cansado pai, de quem tinha grande medo e profundo respeito submisso, mas de quem gostava muito.
O primeiro mês foi árduo, difícil e melancólico. Árduo porque a casa da patroa era grande, os filhos bagunceiros e o trabalho, portanto, imenso, comprometendo seriamente sua disposição pelo estudo noturno num colégio público. Difícil porque agora se sentia mais presa, estava incomodada com a mudança de ares do campo para a cidade e, além disso, vivia muito sozinha, sem ter com quem conversar. Melancólico porque, para compensar o sofrimento de sua solidão, lembrava-se de Antônio, o namorado, seu primeiro namorado, o qual teve que deixar lá na zona rural, sem sequer conseguir se despedir.
Na verdade, Antônio nunca fora realmente seu namorado. Era apenas um peão, um vaqueiro, de jeito simplório e bastante tosco, grosseiro, um moreno forte e bem mais velho que ela, com 27 anos. Tinha fama de ser homem de muitas mulheres, mas nunca ficava muito tempo com alguma. A maior parte de seu tempo, quando não estava com o gado ou outros peões (que para ele eram e mesma coisa), passava sozinho. Enfim, grosso como ele só, não era capaz de definir nem de expressar sentimentos, apenas buscava prazer, qualquer prazer...
Pois foi Antônio, o vaqueiro, o peão, que, certa vez, quando Teodósia foi ao curral buscar leite, atirou-se abruptamente sobre a assustada menina, que sequer teve tempo de gritar. Sufocada em beijos rápidos e nervosos, pôde apenas se debater, de início freneticamente, depois devagar e, por fim, manteve-se imóvel, como que rendida, entregue. Ficou, em seus 13 anos, extremamente surpresa e passou a aguardar com apreensão as vezes em que tivesse que ir ao curral, quando não conseguia dar uma escapada do serviço. Tinha medo que Antônio tomasse maiores liberdades, o que ele sempre tentava, mas esse era apenas mais um fator que incitava e excitava sua aventura. Acabava sempre voltando a encontrar o vaqueiro após jurar mil vezes que não mais iria vê-lo. Para Antônio, Teodósia era apenas uma conquista a mais, um certo privilégio que se concedia por ela ser ainda tão jovem. Mas sabia que tudo era uma questão de tempo. Seu hedonismo primitivo o forçava a aproveitá-la ao máximo, a fazer o que lhe fosse possível, após o que a deixaria. Talvez Teodósia tenha tido sorte ao não encontrá-lo para a despedida... De qualquer maneira, agora, na amargura de sua solidão, idealizava-o e ele não era mais o tosco peão, e sim um atraente cavaleiro (embora nunca um cavalheiro, o que não combinaria com sua estirpe).
Pensava também nos pais, sentia saudade da simplicidade aconchegante de sua casinha, dos pratos de alumínio nos quais os irmãos batiam com os poucos talheres à hora do feijão cozido, da oração de fé e esperança que seu velho fazia à mesa antes das refeições, do fogão à lenha, da luz do lampião, das tábuas que usavam como cama, de lavar roupa no riacho, de ajudar na capina, da voz alta e potente do pai brigando com tudo e todos, da mãe chorando, da falta de dinheiro que trazia um certo ar de sofrimento solidário, das visitas dos compadres que sempre vinham contar “causos” interessantes, do pai saindo pra caçar e voltando com sucesso, da mãe costurando com as amigas e fazendo fofoca, do rádio chiando, da barriga enorme de ser irmãozinho de 4 anos, das galinhas no terreiro, do banheiro separado da casa (chamado de “quartinho”), do canto das cigarras ensurdecendo a tarde, do barulho das árvores chacoalhando suas folhas ao vento, do canto misturado de todos os pássaros, dos cachorros que não paravam de latir, enfim, da ternura acolhedora de sua vida simples. Queria voltar, mas isso lhe era impossível agora, sabia que não seria aceita. Só restava sonhar.
Decorrido algum tempo, todavia, conseguiu se tornar amiga de alguém. Foi conquistada pelo jeito simples e alegre de Márcia, uma empregada em situação muito parecida com a dela, que estudava em sua mesma classe, mas a quem só ficou realmente conhecendo quando foi pedir uma xícara de açúcar e descobriu que ela trabalhava na casa vizinha.
Perto de Márcia, Teodósia conseguia ficar um pouco mais relaxada, esquecer dos problemas e da falta de perspectiva em sua vida. Era uma amiga que realmente a distraía, divertia, fazia rir. Mas, em momento algum, Teodósia se mostrou capaz de ter uma conversa mais séria, falar sobre seus problemas, fazer algum desabafo, falar de intimidades. Márcia, pelo contrário, falava de muitas coisas, embora nunca de maneira profunda, e com seu jeito meigo, provocativo e alegre, conseguiu convencer Teodósia a comprar um biquíni. No próximo domingo iriam a lagoa, com mais duas amigas de Márcia. E assim fizeram.
O percurso era de 5km e seria feito a pé. Para Teodósia, a distância não era problema. No entanto, ela estranhou o fato de Márcia ser a única das quatro amigas a já ir trajando seu pequeno biquíni, sem outra roupa por cima. Continuou meio ainda sem compreender quando um carro com dois rapazes parou e ofereceu carona. Prontamente, em nome do grupo, Márcia aceitou o convite e entrou na frente, se instalando junto ao colo de um dos moços. Teodósia, com medo e apreensiva, sentou-se atrás, junto com as outras amigas.
Aquilo lhe era estranho. Márcia era, de fato, a mais bonita (ou menos feia) das quatro amigas. Parecia estranho como ela se deixava agarrar e beijar por um homem desconhecido de maneira tão natural, como se isso fosse a coisa mais normal do mundo. Teodósia começou a lembrar de Antônio, mas afastou rapidamente tal pensamento. Ela começava a perceber o quanto Márcia era vulgar, mulher-objeto, mesmo que estivesse gostando de ficar ali. Teve receio em pensar o mesmo de si própria em relação a Antônio.
Enfim chegaram à lagoa e, de maneira bastante informal, separaram-se como desconhecidos: os moços foram ao bar, atrás de bebida, as moças foram à beira d’água, atrás de bronzeamento.
Teodósia sentia-se meio confusa, isolada de seu mundo, distante de casa, perdida, só. Afastou-se das amigas dizendo que ia andar um pouco e preferia ficar sozinha. Mas o sol era muito forte, o calor intenso, o dia abafado e transpirante. Não resistiu e entrou n’água, não muito longe das despreocupadas amigas.
Infelizmente, porém, Teodósia entrou numa das partes mais perigosas da lagoa. Era uma pequena enseada onde, à pouca distância, a profundidade chegava a até 12m. Ela não teve tempo de perceber o perigo até ser tarde demais e não saber como havia chegado num lugar tão fundo. Não sabia nadar, debateu-se um pouco, mas não muito, nem tentou gritar, de tal maneira que não chamou a atenção de outros banhistas. Acabou afundando de fato. No princípio, assustada, via tudo cor amarelo-escuro-esverdeado, depois tudo era verde escuro, por fim tudo era negro e frio. Alguma coisa prendeu-se a seu pé, o que só a deixou mais afobada e amedrontada, não tinha ar nos pulmões, que já se enchiam de água, cortante ao passar por suas narinas. Soltou pela boca as últimas bolhas de ar que retirou deste mundo, tentou olhar para cima, em busca de ajuda, de apoio, ou simplesmente para ver a claridade pela última vez, mas seus olhos já estavam turvos, consumidos pelo silêncio e a negritude que indefiniam o ambiente. Podia não estar feliz com a vida que levava, mas, inevitavelmente, à beira da morte, era o instinto que dominava seu corpo, impingindo-lhe uma última atitude desesperada. Mas nada mais havia que pudesse ser feito. Sentiu uma tremenda angústia ao notar que tudo estava perdido, aquela terrível e indescritível sensação de perda, ao ter consciência que não adiantava lutar, estava perdida, era a percepção do fim. Veio então o sentimento letárgico do acomodamento, do entregar-se ao fim da existência, o último desapego. Perdeu, por fim, os sentidos. Seu corpo pendulava agora ao sabor das águas, como uma planta aquática qualquer.
Só quase 20 minutos depois as amigas deram conta que Teodósia havia desaparecido. Tendo sido vista pela última vez ao entrar na água, o diagnóstico da catástrofe veio de prontidão: afogamento, era o que previam os gritos de socorro. A ajuda até foi prestada: um salva-vidas, que não se sabe por onde andava, mais três homens, atiraram-se em busca do corpo. Nisso toda uma multidão de curiosos já se aglomerava à margem do provável local do acidente, com sua curiosidade mórbida. Enfim, após algum tempo de procura, um dos homens emerge e diz em voz triunfante: “Achei! Tá aqui, presa numa planta!”. Tornaram a mergulhar então e, pouco depois, o corpo inerte de Teodósia submergiu das profundezas.
Em seguida o corpo é depositado na areia para que se tente a reanimação. A multidão se condensa, todos querem ver. Respiração boca a boca, pressão no tórax, nada adianta mais. Teodósia não retorna, mas todos se alimentam com a visão do jovem corpo sem vontade, que balança aos passos do homem que o carrega, de qualquer jeito, para dentro do carro, partindo em disparada rumo ao hospital.
Restou um estranho silêncio, enquanto a multidão se dissipava. Um silêncio quase respeitoso, mas as coisas acabaram voltando ao normal, em mais um dia na lagoa, como se nada tivesse acontecido. Apenas Teodósia é que não volta mais.