Essa coisa egoísta chamada guarda-chuva

Muito bem. Veio finalmente a chuva, que tanto queríamos aqui para Brasília. E não demorou uma semana até que começássemos a reclamar que estava chovendo demais. Na verdade, chove pouco: em geral, três vezes por dia. A primeira ainda de manhã, próximo ao horário em que as pessoas estão saindo de casa para trabalhar. A segunda, durante o horário de almoço, quando as pessoas também estão na rua. E a última, naturalmente, ocorre ao término do dia de trabalho, quando estamos voltando para casa.

Era nessa chuva que eu me encontrava. Caminhava tranquilo com o meu guarda-chuva, pois vinha conseguindo me manter relativamente seco. Apenas cuidava para que nenhum motorista resolvesse me dar um banho, pois nem sábado era. Eu já estava com vontade de escrever sobre a chuva há algum tempo. Ali, enquanto convivia com ela, eu pensava justamente em como escrever. Sou como aquele personagem, acho que do John Fante, que se afoga no meio do mar e fica pensando em como irá descrever aquela cena.

Comecei a reparar então no meu guarda-chuva. Finalmente eu havia comprado um. Simples, pequeno. Ninguém além de mim cabe embaixo dele. Mas servia. Eu podia me locomover normalmente, ao contrário daquela multidão de gente que, não tendo um guarda-chuva, se via obrigado a esperar embaixo de toldos e marquises até que a chuva passasse.

Penso nessas pessoas. Elas também querem chegar em casa, só não querem se molhar. Assim como eu, elas trabalharam o dia inteiro. Não têm um guarda-chuva, é verdade. Mas quem sabe esqueceram em casa, ou perderam em algum lugar, e hoje, justamente hoje, foram pegos desprevenidos. Que poderia eu fazer? Não tenho como oferecer uma carona. É o caso em que preciso escolher entre eles e eu. Como todo mundo, escolho a mim mesmo, e não há ninguém que ache nisso algum motivo de censura. Ainda assim, tenho a impressão de que seria melhor não ter visto essas pessoas. Se fôssemos cegos, não teríamos pecado. Mas como agora dizemos “vemos”, o pecado permanece.

E eu seguia pensando essas coisas quando apareceu na minha frente um cadeirante, com camisa do Flamengo. A primeira coisa que eu reparei foi a de que ele não carregava um guarda-chuva. Não tinha como, afinal. Infelizmente, ele possuía apenas duas mãos, e as duas estavam bastante ocupadas em fazer girar as rodas da sua cadeira.

Ora, os cadeirantes andam por aí há muito tempo. É de se imaginar que, vez ou outra, tenham que enfrentar uma chuva forte. Apesar disso, nunca ninguém havia me alertado para o problema que enfrentam ao carregar um guarda-chuva. É claro que estou falando dos cadeirantes que dirigem cadeiras normais, e não aquelas com motorzinho. E se eles precisarem comprar uma dessas para evitar a chuva, é natural que prefiram se molhar.

Aparentemente, eu não era o único a ignorar essa dificuldade dos cadeirantes, pois logo adiante havia uma vendedora de guarda-chuvas. São seres que surgem do nada ao primeiro sinal de chuva e que desaparecem tão logo ela passe. A vendedora deu a sorte de encontrar um desavisado que caminhava sem guarda-chuva – ou seja, o cadeirante. E tratou logo de oferecer um para ele. O cadeirante recusou, disse que não tinha como. A mulher então reparou na sua condição. Pensou um pouco e insistiu:

- Mas e se a gente colocasse ele...

- Não, moça. Não tem como.

E continuou caminhando, até a parada de ônibus, onde havia tanta gente de guarda-chuva que eles se enroscavam uns nos outros. Eu, que também havia chegado lá, tratei de me acomodar da melhor maneira possível, enquanto esperava. Até que veio o ônibus, e eu, finalmente, fechei o meu guarda-chuva.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 14/10/2011
Reeditado em 14/10/2011
Código do texto: T3275726
Classificação de conteúdo: seguro