As árvores morrem de pé
30 de dezembro, e eu trabalhando. Era apenas um free-lancer de jornalismo, mas isso não significava mais folga para mim. Tinha que entrevistar antigos personagens da Gazeta do Povo. E precisava acelerar o meu trabalho, porque até então eu havia conseguido poucas entrevistas. O doutor Moysés Paciornik já havia morrido antes de ser entrevistado, e isso era um sinal para que eu não perdesse tempo. Na busca por nomes a serem entrevistados, alguém me sugeriu um certo Calqui. Fotógrafo das antigas, diziam. Na época ainda colaborava com o caderno Gourmet da Gazeta. Calqui. Demorei um tempo para descobrir seu nome: José Kalkbrenner Filho. Fui entrevistá-lo.
Sai da redação com um gravador digital. Coisa chique. Nunca havia mexido em um antes. Facilitava muito. É preciso um esforço sobre-humano para fazer perguntas a alguém, ouvir a resposta, entendê-la, anotá-la em um bloco de notas e a partir dela, ao mesmo tempo, preparar a próxima questão. Sê bem vindo, gravador digital.
Cheguei até a casa de Kalkbrenner levado pelo carro da Gazeta. A entrevista estava marcada para as 17h. Olhei para o relógio e era exatamente a hora que ele marcava. Apertei a campainha e Kalkbrenner apareceu. “Bem pontual você, hein? Isso é coisa de alemão”. Era verdade. Falei que eu era um alemão, como ele. Ou austríaco, que vem dar na mesma. E começamos a conversar sobre pontualidade, ele citando diversos episódios que, no fim das contas, vinham a ratificar as teorias sobre o assunto da raposa no Pequeno Príncipe.
Em seguida, começamos a falar dos anos 50, década em que Kalkbrenner havia trabalhado como fotógrafo na Gazeta. O alemão me ofereceu um punhado de histórias. Diz que o Mbá de Ferrante tinha um artigo diário do jornal, falando sobre assuntos gerais da cidade. Um dia, ele percebeu que uma árvore na Praça Carlos Gomes, próxima à Gazeta, havia secado. Pediu que Kalkbrenner fosse até lá tirar uma foto dela. Ficou uma foto bonita e bem contrastada. Foi publicada no dia seguinte.
Embaixo da foto, Mbá de Ferrante escreveu: “As árvores morrem de pé”. Passados seis meses, a árvore floriu novamente. Kalkbrenner tirou uma nova foto e deixou em cima da mesa de Mbá – a foto da árvore que ele havia declarado morta e que agora estava deslumbrante. Diz que foi uma gozação na redação. A história ficou. No enterro de Mbá de Ferrante, Kalkbrenner pensou consigo: “É, Mbá... você se foi, mas a árvore continua lá”.
Ouvi essas histórias por quase uma hora. Kalkbrenner também havia sido ciclista, e dos bons. Mostrou-me uma espécie de álbum com fotografias e reportagens sobre a sua participação em competições do gênero. Ao final, levou-me até o seu estúdio fotográfico e mostrou-me as suas antigas e preciosas máquinas. Ou seja, foi um encontro bem agradável. Ao terminar a entrevista, despedi-me dele e voltei a pé para o centro de Curitiba.
Verifiquei então que o gravador havia realmente gravado a nossa conversa. Eu, que não sabia ainda mexer direito nele, fique aliviado. Mas ao tentar sair de uma das telas, eu apertei algum botão errado – se fosse o botão de autodestruição, o estrago não seria maior. Eu simplesmente apaguei toda a entrevista. Todas as histórias, que me ofereciam material mais do que suficiente para o meu trabalho. Tudo perdido. Aquilo que eu havia anotado no meu bloco de notas não era suficiente. A entrevista, em resumo, havia sido em vão.
Esperei passar a virada do ano, e então liguei para o Kalkbrenner.
– Ô Kalkbrenner, como é mesmo aquela história do Mbá de Ferrante?
Essa, pelo menos, ainda pôde ser salva.