Bebi, bateu, pirei!

Câmera lenta. Close na mão esquerda branca e gorda que parecia voar. Livre como um pássaro. Reta e firme como um Learjet. Dez segundos depois, a mão se aproxima de uma prateleira lotada de vasilhames plásticos de dois litros. O som, desde o início, é feito de um emaranhado incompreensível de vozes. Ao tocar a garrafa de refrigerante de abacaxi, a câmera lenta deu lugar à velocidade normal e eu voltei a escutar com clareza as palavras ditas pelas pessoas que estavam perto.

Notei que havia gente a três ou quatro passos dali fitando-me, curiosas. Percebi, então que a tal câmera lenta não tinha sido mera imaginação: reproduzi fielmente na vida real. Me senti como um pirralho espoleta flagrado bem no meio da traquinagem. Para diminuir a sensação de "bandeira", simulei torcicolo mal-curado e emiti um "ai" de dor.

Finalmente! Doze anos depois de saber da existência do sabor abacaxi daquela famosa marca de refrigerante da minha cidade, levei uma garrafa para experimentar em casa. "É tão ruim quanto o programa do Nelson Rubens", advertia meu pai todas as vezes que falávamos da bebida. Mas eu não me convencia. Além da curiosidade louca, incessante, eu levava em consideração o seguinte raciocínio: tubaína é o resultado da mistura dos refrigerantes de maçã e de abacaxi. A tubaína produzida em minha cidade é uma delícia. O refrigerante de maçã também. Logo, o de abacaxi devia ser bom! Sempre que me lembrava da bebida, procurava por garrafinhas do tipo caçulinha ou, no máximo, versão 600 ml. Nunca encontrava. E preferia não arriscar levando a garrafa de dois litros, por motivos diversos: eu esquecia, adiava e - deus me livre! - temia que meu pai estivesse certo.

Um dia tomei coragem. Mentalizei a imagem do Jerônimo, estufei o peito e disse: "vai ser hoje!". Em casa, expectativa. Assim que cheguei do supermercado, aloquei espaço privilegiado para a novata na geladeira. A garrafa de Fanta laranja guardada na porta deve ter ficado roxa de inveja a ponto de ter sido confundida com Fanta uva. Foram seis horas de resfriamento e ansiedade. Eu batia palmas leves e sentia arrepiar os pelos dos braços ao pensar que dali algumas horas faria uma experiência que levou anos para acontecer.

À noite abri a garrafa, despejei no copo e bebi. Ao sentir o líquido amarelo transparente e gelado molhar o espaço entre o céu-da-boca e a língua, uma série de quatro cenas me veio à cabeça: o coisa-ruim urinando no copo; eu calçando a canhota com sapatão de operário e caceteando a prateleira de refrigerantes de abacaxi; dezenas de rodelas da fruta quase pretas de tão passadas num potão gigantesco de conserva, formando o líquido que havia de se tornar a matéria-prima para o maldito refresco e, por fim, eu chorando imobilizado a uma cadeira no centro de uma sala com luz branca, observando as paredes cobertas com centenas de rótulos do refrigerante de abacaxi, que formavam uma espécie de papel de parede artesanal.

Uma lágrima de arrependimento desceu o rosto. Capturei-a com a língua para diminuir, um pouco ao menos, aquele indesejável gosto. Não foi suficiente. Tive que recorrer a uma bala de menta.

Um minuto depois, lavei a cara para desaparecer a expressão de desgosto e, quando já neutro, levei um copo para a minha namorada. Ela experimentou bem experimentado, mais de uma vez, com cautela, para não errar nas palavras. Ela não disse nada, apenas olhou para mim. Li a seguinte frase na cara dela: "mas que bosta, hein, meu filho?". E fiz também, com a cara, uma frase concordando com ela: "de fato...".

"Nunca mais", eu li no poema de Edgar Allan Poe. "Nunca mais!", gritei na sexta série durante a aula de matemática. "Nunca mais...", eu disse calmamente ao beber o primeiro, único e último copo daquele refrigerantezinho sem-vergonha. Nunca mais.