Para o alto
Quando saio de casa para pequenas caminhadas nos arredores, em busca do sol da manhã e da necessária atividade física, não levo nada, exceto uma bolsinha com a chave e meu celular com câmera. Então posso andar despreocupada, sem medo de ser assaltada. Vou caminhando, procurando evitar olhar para baixo, buscando sempre olhar para o alto.
Ao nível da rua vejo coisas feias, que me deprimem: lixo nas calçadas, motoristas que desrespeitam as leis de trânsito, pessoas carrancudas, com olhares esgazeados para dentro de si mesmas, oprimidas pelos problemas da existência, pichações, bens públicos depredados pela inconsciência de alguns, brotos de árvores criminosamente arrancados por mãos insensíveis, vitrines ostentando todo o arsenal da guerra consumista, pessoas bebendo, discutindo, gente estendida nas calçadas, sob as marquises, abrigando-se como podem do intenso frio invernal, crianças doentes, ou maltratadas, pessoas lavando calçadas, num flagrante desperdício de água...
Então, para furtar-me a essa realidade deprimente, olho para baixo somente o necessário: cruzamentos e possíveis obstáculos no chão. E elevo meu olhar para o alto. No alto posso ver as copas das poucas árvores que ainda teimam em sobreviver no deserto de asfalto e concreto. Copas de verdes e tamanhos variados, floridas ou não, e até com frutos, isso mesmo! Hoje, por exemplo, vi uma ameixeira carregada de frutos, no quintal de uma casa que dá frente para a avenida. E lembrei-me de minha infância, pois havia uma dessas no quintal de minha avó, e havia também um pessegueiro, um limoeiro e um abacateiro; e plantas medicinais: hortelã, cidreira, poejo, babosa, guaco, etc.; salsa, cebolinha e flores, muitas flores por todo lado, em canteiros ou pequenos vasilhames que serviam de vaso: panelas velhas, bacias furadas e canecos.
No alto posso ver as flores debruçadas das sacadas dos apartamentos e, inesperada e inacreditavelmente, um pequeno bosque na cobertura de um prédio. Se todos fizessem isso!
No alto vejo os fios dos postes, onde sempre há um ou outro passarinho. Postes que, às vezes, perpassam as copas das árvores, violentando-lhes os galhos. Hoje minha vista foi atraída por algo que se mexia num galho, algo de um verde mais claro e brilhante. Demorei a perceber o que era, de tão inesperado: um periquitinho. Parei, ia fotografar mas, enquanto pegava o celular, ele percebeu minha presença e voou.
Mas ficou-me a lembrança.