Amanhã é dias das crianças.
Parou de digitar, pôs os óculos sobre alguma coisa em que trabalhava na escrivaninha, deitou sua cabeça nos cotovelos e fechou os olhos. Como chegou até ali? A luz do monitor não lhe deixava concentrar os pensamentos, tão pouco o volume de trabalho que apesar da menor quantidade em comparação aos seus antigos empregos exigia muito mais capacidade de raciocínio e menos atos automáticos.
"Amanhã é feriado" - lembrou-se com certa alegria, minada vagarosamente por uma profunda voz que alertava: "você tem que estudar, tem que ser alguém na vida, vagabundo".
A voz era de seu pai. Um medo profundo fabricado há muito tempo. Medo do desemprego, da desgraça, da ignorância. Cresceu consciente de que dinheiro é a saída para todos os males. Aprendeu a 'Lei de Talião' ainda com dez anos de idade, devido à uma caneta quebrada por um colega na escola. Não quis retribuir a malícia como ordenado,pois a religião não permitia, mas a face do pai severo tratando-o como um covarde atormentava, por vezes, sua vida pacífica.
"Amanhã é dia das crianças"
Um meio sorriso escapou-lhe do rosto ganhando uma luta breve contra os olhos que ardiam de cansaço. Seu filho poderia ter tudo o que ele não teve, se divertir no seu feriado sem a obrigação de ter que estudar forçado para um colégio militar de que não gostaria de entrar. Brincar com os amigos sem apanhar, por isso. Relacionar-se normalmente com o pai, como aquele homem nunca pôde.
Lembrou-se de sua infância. Não que tenha sido de todo ruim, mas poderia ser melhor em certas ocasiões que extrapolavam o senso do comum. Algumas cintadas, pontapés e arremessos a menos estaria de bom tamanho.
Lembrou-se da mãe que outrora o tratava como filho, mas hoje já não tanto assim.
"Talvez quando eu for rico, ela volte a me tratar bem..."
Talvez tudo seja menos do que o homem imagina ser, as coisas não sejam tão ruins, o futuro menos tenebroso do que o declarado pelo pai e no fundo cada um ache que o lesionado é si próprio e por isso encerre-se no seu próprio ego,sem abrir-se para um diálogo restaurador.
Para cada um a sua vida é a pior. Percebo isto quando observo o mundo. O mundo faz parte da vida de todos nós, e todos, então, em coro, creem que ele esteja perdido e seja o pior lugar para se viver.
Enquanto isso, em algum lugar do planeta, o homem repõe os óculos, olha o relógio de aço no pulso e retoma o trabalho. Ele sabe que nada é ruim como parece, mas sim uma lente de aumento na sua própria rotina em busca de atenção de terceiros. Afinal, se divertiu, correu, brincou, pulou com as outras crianças, ainda que escondido ou afrontando ordens maquiavélicas de um pai não carrasco, mas preocupado, porque conhece o mundo mais do que o filho e reflete o seu medo nele.
Como posso saber tanto sobre o homem? Não que eu seja fofoqueiro, ou bisbilhote o trabalho alheio, mas este homem sou eu.
- A benção, pai e mãe.
---------Feliz dia das crianças---------