A MORTE EM TRÊS ATOS
A MORTE EM TRÊS ATOS
Mais famoso romance do brilhante escritor e filósofo franco-argelino Albert Camus, “O Estrangeiro”, escrito em 1957, é um livro para ser lido, relido, devorado, reverenciado, comentado, enfim, saudado como um ente da família. A crítica classifica a obra como um romance existencialista, rótulo rejeitado pelo autor, que o considerava mais alinhado com o absurdo.
Classificações à parte, “O Estrangeiro”, apesar de ser um livro breve, situa-se como uma das maiores obras da literatura francesa do século XX. Reli a história nesta semana. Em um só dia. É o tipo de livro que não permite que o esqueçamos na cabeceira da cama: exige ser deflorado de um só fôlego. Quem espera encontrar um enredo cheio de nuances e reviravoltas encerra o livro decepcionado. Possui uma linha narrativa simples. É a história de um homem apenas. De um homem que não se destaca na multidão. Mais que isso: não almeja qualquer luz, não sente necessidade de marcar época, de ser adorado pelas multidões ou de ter sua opinião estampada em periódicos. É a saga de Meursault, personagem-narrador, que recebe a notícia da morte da mãe, em um asilo distante. Enterra a mãe, sem esboçar qualquer sentimento. Algum tempo depois mata um árabe, sem qualquer motivo. Preso, julgado, condenado, será executado, sem qualquer terror de sua parte.
Meursault é um homem interessante a ser estudado. Não tem preferência entre a cor azul e a cor vermelha. Não acha que isso tenha qualquer importância. É um homem livre, um homem que não se filia a qualquer fé, a qualquer partido político, a qualquer ideologia, a qualquer vento da moda, a qualquer paixão. Mora só em um pequeno apartamento. Não vê necessidade de morar em um lugar mais espaçoso. Cumpre suas necessidades biológicas sem ver nisso necessidade de cerimônia ou reflexão. Não crê em Deus e não sofre com isso, não pensa nisso. Não cogita, não especula, não filosofa.
Comete engano quem enxerga em Meursault um homem amargurado, revoltado com a vida. Seu espírito é calmo e sereno. Não há perturbações em seu cérebro. Tudo para ele é simples e natural. Faz amor com Marie e acha isso bom. Casaria com ela se fosse da vontade dela. Para ele, tanto faz casar ou não casar. Sofre como toda a gente, mas sua dor maior tem a ver com algum castigo físico. Atingir sua alma e implantar nela alguma ferida é tarefa das mais difíceis.
Muito se falou sobre “O Estrangeiro”. Versões das mais variadas povoam o mundo. É, talvez, o estrangeiro mais globalizado, dadas as suas dezenas de traduções. Prefiro analisar a obra sobre o viés da morte. Aposento por um momento a tese do absurdo e a tese do existencialismo. Pensemos na morte como fio-condutor. A morte em três atos: a morte da mãe de Meursault e sua reação; a morte do árabe, causada por Meursault e a morte do personagem, um evento ainda a acontecer e comentado por ele.
“Hoje mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei. Recebi um telegrama do asilo: ´Mãe morta. Enterro amanhã. Sinceros sentimentos´. Isso não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem”. Assim, Camus abre o livro. Espantosamente, abre o livro. Para Meursault a morte da mãe é um acontecimento banal. Por vezes, o tédio lhe acomete. Cumpre sua obrigação de filho. Não vê com reprovação o fato de ter mandado a mãe para um asilo. Segundo suas próprias palavras, não havia nada que acrescentar um ao outro e se entediavam com a presença um do outro. No asilo, ela teria companhias mais compatíveis. Não a visitava por ser longe e por ter que perder o domingo, o sagrado domingo de descanso.
Raymond travou amizade com Meursalt. Para Meursault tanta fazia ser amigo ou inimigo dele. Tanto fazia ser amigo ou desconhecido. Após desavenças de Raymond com uma amante árabe, a qual agrediu, ganhou a inimizade de um grupo de árabes, liderado pelo irmão da moça. Raymond passou a ser perseguido. Houve uma disputa física, da qual Meursault também participara. Raymond foi ferido por uma faca no braço. Algum tempo depois, na praia, Meursault se encontra com o árabe. Sem briga, sem preliminares, atira contra o mouro. Morto no chão, ainda é alvejado por mais quatro tiros. Camus encerra assim o primeiro capítulo: “Sacudi o suor e o sol. Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz. Voltei então a disparar mais quatro vezes contra um corpo inerte onde as balas se enterravam sem se dar por isso. E era como se batesse quatro breves pancadas à porta da desgraça”.
A morte ainda tem participação na trama. Mas no último ato, ela só se anuncia, não ceifa. Só se insinua, não se apresenta com martelo e foice. Preso, diante do religioso juiz, Meursault assombra o magistrado ao revelar suas ideias sobre Deus e sobre vida eterna. Mostra-lhe apenas o vazio e o conformismo com a situação. Temos aí um juiz de alma ajoelhada. Desconcertado. Durante o julgamento, ele vê com certo tédio tudo o que se fala dele. O seu advogado tenta mostrar que Meursault é um homem de bem. O promotor de Justiça, na posse de sua espada inquisitória, lhe imputa o crime e espalha as cinzas de sua alma pecadora. Mais do que julgado pelo crime, ele era julgado por não ter sentimentos. Por não chorar corretamente no funeral da mãe. Por tomar banho de mar após sepultar o corpo da mãe. Meursault concordava com um e com o outro. Concordava com o juiz. Para ele, tanto fazia. Só queria voltar para a sua cela e dormir o sono dos justos. Ou dos ímpios. Não que isso tivesse importância para ele.
Condenado à morte. Não via sua sentença com assombro. Só lamentava não conhecer um meio de se fugir. Mas fazia isso sem qualquer energia ou força arrebatadora. Era mais um exercício para passar o tempo. Não haveria outra forma, em qualquer tempo ou em qualquer língua para se terminar o livro, como Camus o fez: “Anunciavam possivelmente partidas para um mundo que me era para sempre indiferente. Pela primeira vez, há muito tempo, pensei na minha mãe. Julguei ter compreendido porque é que, no fim de uma vida, arranjara um "noivo", porque é que fingira recomeçar. Também lá, em redor desse asilo onde as vidas se apagavam, a noite era como uma treva melancólica. Tão perto da morte, a minha mãe deve ter-se sentido libertada e pronta a tudo reviver. Ninguém, ninguém tinha o direito de chorar sobre ela. Também eu me sinto pronto a tudo reviver. Como se esta grande cólera me tivesse limpo do mal, esvaziado da esperança, diante desta noite carregada de sinais e de estrelas, eu abria-me pela primeira vez à terna indiferença do mundo. Por o sentir tão parecido comigo, tão fraternal, senti que fora feliz e que ainda o era. Para que tudo ficasse consumado, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muito público no dia da minha execução e que os espectadores me recebessem com gritos de ódio”.