O corcunda

Nada como a crônica para despejar nossos traumas infantis. Rubem Braga escreve sobre o vexame que passou por conta de uma redação escolar. Carlos Heitor Cony cita os episódios decorrentes da sua gagueira. Nelson Rodrigues revela a inveja que sentia dos colegas que tinham pão com ovo como merenda. E até mesmo Clarice Lispector tinha do que se queixar, pois relata episódios marcantes da infância que passou no Recife. Pois bem. A coisa não seria diferente comigo. Também tenho cá os meus traumas – ou, pelo menos, a lembrança deles. E como está na moda declarar-se vítima de bullying, também eu quero fazer o meu protesto, na esperança de que no futuro isso possa me trazer manifestações de solidariedade, ou mesmo perdão, diante de algum erro que venha a cometer.

Meu caso é mais um, é banal – diz o filósofo. Mas preste atenção por favor. Tenho um problema na coluna, que não sei o nome e, honestamente, não me interessa saber – tenho, pois, o problema. É algo que me faz andar mais curvado do que a maioria das pessoas. Não é apenas cifose ou lordose, mas uma mistura dos dois, somada a mais alguma outra coisa. Enfim. Na escola, uma pinta logo vira um caroço, e daí se imagine o que não seria uma pessoa mais ou menos curvada: logo virei o corcunda da escola.

Contribuiu para isso a péssima ideia da Disney em produzir um desenho sobre Quasímodo, o Corcunda de Notre Dame. Crianças que, até então, jamais souberam o que era um corcunda, passaram então a tomar conhecimento e identificar no personagem características que, reparando bem, já haviam visto em mim. Trataram então de exagerá-las.

E então, sempre que a situação permitia, chamavam-me de corcunda. Eu não podia nem mesmo me vingar arrumando apelidos para as outras crianças, e por dois motivos: primeiro que, por mais horríveis que fossem os apelidos, dificilmente pareceriam tão acertados quanto o meu. E segundo que eu não era mal o bastante para fazer isso. Talvez eu até reclamasse e retrucasse algo quando me chamavam disso, não lembro bem. Na maioria das vezes, no entanto, devia ficar calado. Também não digo que fosse chamado dessa maneira o tempo todo – apenas o suficiente para destruir minha auto-estima. Em geral, era usado como argumento contra mim. Fizesse alguma coisa que desagradasse, recebia como resposta a lembrança da minha condição na época: corcunda de Notre Dame.

Com o tempo, o apelido foi rareando, e isso se explica pelo próprio crescimento das crianças – aos poucos, elas vão aprendendo melhor a dissimular, e não contar o que pensam realmente umas das outras. Aprendem isso com os adultos. E, como eles, deixam para falar mal e criar apelidos apenas na ausência das pessoas. É apenas por isso que não existe bullying entre as pessoas crescidas. Talvez eu ainda sofra hoje reflexos da sinceridade daquele tempo, embora eu não guarde nenhuma espécie de mágoa. Ou seja, não tenho motivos para me vingar. Em geral, essas crianças se vingam nelas mesmas. E o fato de virar um escritor introvertido não é prova de outra coisa.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 10/10/2011
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