ANAMNESE

Não sei ao certo quanto tempo faz, mas, sei com certeza que estas lembranças remontam a várias décadas. Às vezes me deixam feliz, às vezes me trazem tristeza, mas, no geral, me fazem pensar.

Hoje, sozinho na minha sala, estava a contemplar o azul intenso do céu e o calor bestial de mais de 30 graus que vem fazendo por estes dias. Lembrei-me do céu azul sobre a cidade onde nasci, lembrei-me do quanto podia uma criança ser simplesmente feliz, alheia a qualquer turbulência à sua volta. Com isto fui me aprofundando na minha temporal regressão e lembranças foram se tornando claras, outras nem tanto.

Penso então que nosso cérebro tem algum dispositivo que mantém certas lembranças nas sombras, o que faz com que não possamos sentir. São com certeza as más reminiscências guardadas pelo Anjo que ativa este mecanismo de defesa. Estes tempos de natal me trazem estes pensamentos, reencontro do homem e da criança que insiste em se mostrar, eu criança a sorrir para o eu adulto, a mostrar passado, presente e futuro.

Dos meus natais ainda posso me lembrar e algumas situações se mostraram até engraçadas, algumas me trouxeram lições, mais adiante outras apontaram para o lado real da vida, de certa forma todos os meus natais me deram algo como momentos de felicidade pura, ou me aguçaram o senso crítico e o discernimento entre religioso, celestial e o profano, terreno.

Também teve o natal que passou desapercebido, como se fosse um dia qualquer, despojado da magia que cerca os finais de ano. Bom, esta minha colocação sobre a data máxima da cristandade pode me trair, ou me conduzir a dissertações filosóficas e temerariamente a sofismas também. Que os doutos o façam e fico com minhas inocentes lembranças. Algumas coloco aqui :

Foi por volta de 1962, talvez 1963. O estádio municipal estava lotado de crianças, farta distribuição de presentes. Ganhei um corte de tecido rústico que daria uma boa peça de roupa. Mas o que mais me agradaria era um brinquedo e estava de certa forma frustrado. Por outro lado um irmão mais velho estava na mesma situação que eu, a ele agradaria mais um corte de tecido rústico que um brinquedo e, desta forma, corrigimos entre nós o terrível erro do Noel.

Por volta de 1967 meu pai voltou do trabalho na véspera do natal e entre Suzies e Juquinhas às meninas de casa ganhei um reluzente brinquedo que me fazia ficar tempos sem fim em devaneios lúdicos.

No ano seguinte papai só conseguiu trazer bolachas e doces, Lembro-me que neste ano eu já trabalhava e podia comprar algumas besteiras. Dei então uma lata de castanhas de caju ao meu pai e não levei em conta que ele havia extraído todos os seus dentes. Bem poderia ficar guardada até a chegada da dentadura, mas seria impossível com tanta criança por perto. Eu Noel falhei.

No Natal de 1969 ele não estava mais entre nós. Muitos natais se passaram desde então.

Mas o que me trazia mesmo felicidade e alegria incontida era a ansiedade na espera da chegada, não do natal, mas, dos meus irmãos que tão jovens se foram para a capital em busca do nosso pão de cada dia. Nem precisava trazer presente, bastava a presença, o amor fraterno e a visão maravilhosa do brilho dos olhos da minha mãe, com todos os seus filhos reunidos. Eu diria que até aqueles que partiram desta vida se faziam presentes em espírito, dava para sentir.

Hoje vejo o natal com início de uma pausa e reflexão para o ano novo que se aproxima, um época de balanço dos acontecimentos do ano, criação de estratégias de sobrevivência e fé na capacidade de trabalho.

O natal agora se mostra em nossos filhos, moto perpétuo da fantasia que povoa o imaginário e enriquece o comerciante.

Poucos se lembram do outro lado do natal, que acalenta nosso espírito, e nos traz felicidade, nos faz crer, como de fato creio, na comemoração do nascimento de uma criança que ao chegar recebeu três presentes que definiram sua vida e sua morte.

Presentes de reis a um Rei, o ouro de Baltazar ao Rei Jesus, o incenso de Melchior ao Deus vivo que habitava naquela criança e a Mirra de Gaspar que lhe atestava a ressurreição dos mortos. E um Reino de Amor sem fim que se mostra a todos os homens de boa vontade.

Feliz Natal !

Paulo de Tarso
Enviado por Paulo de Tarso em 24/12/2006
Reeditado em 27/12/2006
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