FASE CRÔNICA

Eu deveria estar escrevendo um artigo. O assunto poderia ser qualquer um, desde que eu imprimisse uma opinião, definisse o lado que quero ficar. Há dias estou matutando sobre o que escrever e, principalmente, se sei ou quero dizer o que penso. A verdade é que o mar não está para opiniões. Há algum tempo que só sei narrar, contar o que vejo de forma a me livrar das palavras sopradas ao pé do ouvido nas noites insones e solitárias. O que vejo às vezes está nos outros e quase sempre em mim. As histórias me encontram dia e noite, desde o primeiro pensamento do dia ao último – deste só me livro quando vai para o papel.

Não tenho tema para o tal artigo. Estou de descanso do factual que me obriga a posicionar pós e contras. Prefiro o chão, o beco, a terra molhada, o tempo fechado, o existir de cada um. Prefiro o casal de namorados que chega de bicicleta no barzinho bacana e divide uma lata de coca-cola. A sorte do amor tranquilo depois de várias tentativas desequilibradas de ser feliz. O grupo de crianças correndo atrás da pipa que ao ser ‘cortada’ caiu no campinho de terra batida. A mulher que bate o tapete na janela enquanto assovia uma canção desconhecida. A senhora doente que pressentindo sua partida reúne a família e os amigos num alegre almoço de domingo. O rapaz indeciso entre o amor da menina romântica e a paixão da mulher irreal. A criança que pula amarelinha num risco apagado da calçada. O grito da vizinha que não sabe mais o que fazer para ter a atenção do marido. O silêncio dos casais que não encontram mais saída. O pai que recebe o abraço das filhas ao chegar após dia cansativo de trabalho. Arrumar e desfazer malas todas as semanas. Ler o jornal do passageiro ao lado. Aprender outros caminhos. Refazer-se das perdas enquanto trabalha, estuda, limpa a casa, cuida do jardim e do cachorro.

A fase, meus caros, é crônica. É de uma total incapacidade de me posicionar. Quero mesmo é ficar observando e ver onde tudo isso vai dar. Em silêncio desconstruo tudo para depois arrumar do meu jeito. Sou seduzida pela paisagem e por quem por ela passa. O tempo é estático. Resta observar. Muita informação, pouca filosofia. Quem me ensina é uma criança de vocabulário ainda limitado. Tenho a impressão que ela me conhece. Do nascer do sol ela diz que tem medo porque a luz surge assim do nada. Como pode o sol despontar do mar ou do alto da montanha? A criança me consola quando digo que não sei todas as respostas. Não saber, diz ela, é tão bom.

De fato, não sei nada. Aliás, como bem disse o poeta Manoel de Barros “meu fado é não saber quase nada”. O que tenho são breves reflexões sobre as coisas numa tentativa de aparentar certo conhecimento. Sou desatenta quando deveria estar me prevenindo do destino, que cá para nós não pergunta nossa opinião sobre nada. Não saber é martírio e alívio, dor e surpresa. Quando não sei recorro ao dicionário e pronto. Mudo o título, o gênero e o conteúdo. Reescrevo começos, meios e fins. Minha vida e as dos outros. Com a cronicidade de estar inteira, ter dúvidas e nem sempre acertar.

* publicada na Revista Cachoeiro Cult - edição outubro/2011