Chapéus de bruxas

Foram dias difíceis. Elas invadiram a cidade, repentinamente numa nuvem, feito gafanhotos. Estavam por toda parte, mas preferiam as esquinas, com predileção pelas mais movimentadas. Eram daquelas piores. Invisíveis. Me assombravam. Só sabia quando estavam em algum lugar por causa do grande e espalhafatoso chapéu. Causavam um rebuliço medonho. Agitavam motoristas e pedestres que não conseguiam conter o desejo de dizer palavrões. Nunca se provou tanto a paciência e perícia dos condutores de veículos, fossem eles quais fossem. Homens e máquinas pesadas isolavam grandes áreas por toda parte, abriam valas enormes no pavimento escuro, talvez as estivessem enterrando em valas comuns. Que outro motivo teriam para abrirem tantos buracos pelas ruas?

Entrava-se por uma via na certeza que se sairia lá na frente. O trânsito que parecia fluir bem, quedava-se de repente. Olhava-se para os pontos prováveis e logo percebia-se que a duzentos ou trezentos metros instalara-se, sem qualquer aviso, um novo posto de batalha. Lá se via a escavadeira monstruosa abrindo uma trincheira em plena avenida. O combate fazia-se notar pelos chapéus, muito maiores e mais coloridos que os capacetes dos operários. O barulho atormentando os ouvidos, a terra tremendo ao impacto da força bruta. A duras penas, depois de inúmeras manobras no meio do businaço, conseguia-se tomar uma outra via daquele labirinto. Tranqüilizava-se novamente o coração acreditando-se que se conseguiria alcançar uma saída e... que ilusão! Outra área isolada.

Caminhões, ônibus, carros, motos misturavam-se a carroças, carrinhos de catadores de papelão, carrinhos de bebês, bicicletas naquele pandemônio. Um pedinte de cadeira de rodas. Uma vendedora de jornais. Um velho atravessava a rua arrimado em sua bengala, esgueirando-se por entre os carros. Oportunistas ofereciam água gelada para os sedentos, bilhetes de loteria para os que ainda acreditavam na sorte, peixeiras para os p. da vida. Um bêbado muito honesto pedia uma moeda para tomar uma pinga, uma mendiga nem tão honesta pedia uma esmola para comprar um remédio exibindo uma receita médica plastificada ( sua ferramenta de trabalho ) datada de 1998. Era como se a batalha contra elas acelerasse os ânimos.

De noite, na minha cama, depois de cada dia extenuante, elas ainda me assombravam, Povoavam meus sonhos, fechando todos os meus caminhos. Eu não conseguia vê-las se queimando, tampouco visualiza o patíbulo, ou as aspas, ou qualquer outro instrumento de suplício da Idade Média. Nos meus pesadelos elas apresentavam-se como nos contos infantis. Ardilosas gostavam de causar tumulto nas esquinas para amarrar o trânsito.

Finalmente parece que as coisas começaram a clarear. O trânsito no centro já está fluindo a mais de dez por hora. Parece que elas foram rareando, as poucas remanescentes juntam-se ainda em alguns pontos tentando reunir forças para a resistência, mas onde quer que se aglomerem juntam-se também homens e máquinas e começam a abrir as valas. Talvez num futuro breve, sejam só uma lembrança amarga de quando elas por aqui passaram.

Lá, na nossa lembrança, estarão ainda os enormes chapéus cônicos, alaranjados de listras brancas como prova de que ali estão enterradas. Onde será que deixaram as vassouras?

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 07/10/2011
Código do texto: T3262457
Classificação de conteúdo: seguro