NO LIMIAR
NO LIMIAR
Na minha cidade tem até dia de agua, isso é o dia que a companhia de aguas abre a torneira, sendo um dia sim e outro não. Mesmo sabendo que entre os Estados brasileiros o nosso é um dos que dispõe de grandes rios perenes a exemplo de outros que nenhum tem, mais que não passam por tal privação, totalmente indesejada. Apesar do grande crescimento e uma modificação nas vias de acesso e do bazar arquitetônico, São Luís guarda ainda alguns lugares de rara beleza e que sintonia o novo e o velho em uma confluência da luminosidade dos tempos.
Hoje foi dia de agua, fui à casa de minha irmã mais velha e de saída caminhava pela estreita rua cujos desígnios primitivos era para o trotear dos cavalos, e o caminho de carroças e carruagens no tempo de Ana Jansen, hoje dá passagem a automóveis que se espremem ante a necessidade de por lá passarem. Mais ao chegar à Praça da Misericórdia, a mesma que antecede o Largo da Forca velha, onde nos tempos de colonização portuguesa eram executados os condenados por uma justiça que de justa não havia nada. Vi que pessoas que passavam pela Rua do Norte e esgueiravam-se nos carros para ver algo e algumas outras que seguiam a pés pararam junto a um monumento que exibe uma mãe d´agua nua e jorra agua ao seu redor. Presenciei que a aglomeração nada tinha a ver com o monumento e sim com uma mulher alta, magra, cabelos desgrenhados, sua boca mostrava um sorriso meio sem graça sem nenhum dente à mostra. Ela estava totalmente despida seu corpo tostado por muitos dias de sol e de noites dormidas ao relento ainda demonstrava uma beleza em declínio de uma vida que resultava em seu aspecto uma mistura de impressões doces, tristes, análogas demais para uma existência inocente e desafortunada, a alma ainda repleta de sentimentos vivazes e o espirito ainda ornado de algumas flores murchas pela tristeza ressequida e pelos desgostos. Sozinha, totalmente nua de cujo corpo diria ainda como fora bela outrora, ainda guardava as curvas que emolduram um belo corpo de mulher. Ali se encontrava, indiferente às observações de transeuntes, tomando banho com agua que corria da grande sereia, refrescando seu corpo e sorrindo consigo mesma, como se desse a todos eles um tributo de boas intenções frustradas, de sentimentos sadios tornados inócuos e de uma paciência à prova do desprezo dos homens...
Eu me comovi com a cena, com a mulher sem nome a qual dei a alcunha de Tereza, soube depois que a mesma andava sempre só e continuamente dava aquele espetáculo, jamais pedira esmolas e até um cartão da Previdência Social a mesma possuía do que fazia valer as suas pequenas necessidades. Fiquei parado por alguns instantes e assim eu me visitei internamente e vi que um ato que muitos podiam intitular de insanidade regular ou então qual denominação dariam os psiquiatras, paradoxalmente me liguei à cena e que poderia ser aplicado há tantas pessoas, porque há vinte anos atrás a experiência me fez adquirir um conhecimento bastante triste: a ignorância ainda é preferível, porque a adversidade é uma grande mestra, mas cobra caro por suas lições, e em geral o proveito que temos não vale o preço que custaram.
Mais quem seria Tereza, de que universo teria partido ou chegado em suas conclusões lunáticas? Quem se importa com isso ou causaria algum impacto a alguém, além da cena para uns de um grau denotavel de tristeza e outros pelo prazer de ver mais aquela nudez, os hipócritas sem duvidas a julgariam e a condenaria sem pestanejar ao confinamento de uma cela fria, sem sol, sem agua e sem vida. Os clérigos a amaldiçoariam e em suas convicções facciosas diriam ser coisa de satanás, os outros após contarem a outros e darem suas opiniões vazias e sem fundamentos a esqueceriam até vê-la uma vez mais se isso pudesse acontecer mais eu parei no espaço e no tempo e tentei de varias forma construir uma historia de vida para Tereza, onde quem sabe em algum lugar e tempo eu a pudesse ver e assistir nela cenas de rara felicidade em momento que deveria ter vivido. Pensei logo. Oh, de que servem luzes, tão tardia e tão dolorosamente adquiridas, de que serve a beleza, o paladar aguçado e o odor de caro e inebriantes perfumes, se a realidade pode se espelhar naquela nudez de desfaçatez, a frieza dos homens, a indiferença das mulheres e os murmúrios de desaprovação e de pena, de desprezo de uma sociedade claudicante que nem a debilidade de alguém vista na imagem da insanidade pode trazer um pouco de amor de verdade nem que fosse apenas de piedade tocada no amparo e tratamento de Tereza, da qual agora me despeço, até outro dia.