ENTREVÊRO NA CASERNA

ENTREVÊRO NA CASERNA

Dizer que meu relacionamento de trabalho era amigável com o sargento encarregado da Seção de Bombeiros não posso, porque pessoas esquizofrênicas e paranóicas como ele jamais tem capacidade para isto, mas dentre os cabos bombeiros eu era o único, que não havia participado do inquérito que o acusava de envolvimento de furto de gasolina, por conseguinte ele não poderia ter vestígios de mágoas contra mim, até mesmo porque eu observava certa confiança dele no meu trabalho profissional. Sempre nas demonstrações de salvamento em que ele era o chefe destas equipes, eu era sem sombra de dúvidas o chefe da equipe de extinção. A sua confiança maior em mim nasceu justamente em umas destas demonstrações, em que ele com seus homens de salvamento penetraram no fogo para retirar um boneco, que ficava dentro de um tambor na área central do incêndio.

A título de instrução havia sido combinado que o incêndio deveria ser debelado contra o vento e com apenas o uso das linhas de mangueiras do carro. Foi dado o alarme e nós nos deslocamos no menor espaço de tempo para o suposto local do sinistro. Como havíamos planejado, paramos o carro na posição correta e começamos a abrir o corredor de penetração, de imediato os de salvamento penetram fogo adentro, a cortina de fumaça e o calor eram intensos e abrasadores. Da posição que eu estava orientando a extinção observei que a equipe de salvamento estava recuando por não está mais suportando o terrível calor. Eu por iniciativa própria contrariando o que havia sido previsto para aquela demonstração, entrei no carro e rapidamente comecei a operar com o canhão do carro alemão metz, que tinha capacidade de expelir oitocentos litros de água por minuto. A idéia foi um sucesso, o alívio total, porque só assim os bombeiros de salvamento puderam respirar aliviados e realizarem a sua missão a contento sem que os observadores pudessem perceber qualquer falha.

Deste dia para frente cada vez mais a confiança do paranóico cresceu mais sobre a minha capacidade operacional. Alguns colegas nos bastidores chegaram a comentar se fosse eu no comando da operação tinha feito apenas o previsto, havia deixado esta coisa ruim arder dentro das chamas.

O tempo se passava e a fama dos bombeiros da Base Aérea de Fortaleza se espalhava por todo o Brasil, chegando até ser considerado o melhor.

No ano de 1973, fui designado para fazer o Estágio de Padronização de Bombeiros (EPB) no estado do Rio de Janeiro. Coincidentemente nesta época o paranóico havia feito um requerimento para trocar de especialidade, ou seja, mudar do quadro de infantaria para o quadro de bombeiros, aí então, quando eu fui viajar ele me pediu para eu ir até a Diretoria de Administração do Pessoal (DIRAP) para saber como estava o andamento do seu processo. Devido os afazeres do estágio eu não tive tempo de ir vê como estava o seu processo, que além da falta de tempo eu também não sabia andar no Rio de Janeiro. Quando retornei que me apresentei por término do estágio, ele foi logo me cobrando a sua situação sobre a mudança de quadro. Quando falei que não tinha ido à DIRAP, porque não havia tido tempo, este homem transformou-se virando uma verdadeira fera, alegando que todos os cabos do bombeiro eram contra a sua mudança de especialidade e que eu não tinha ido até a DIRAP por falta de interesse e de propósito, porque todos os cabos bombeiros eram farinha do mesmo saco e não queriam que ele trocasse de quadro para ser bombeiro também, mas um dia ele mostraria que iria conseguir. Daí para frente eu me tornei um inimigo ferrenho do maluco, que pouco falava comigo e sempre insinuava indiretas e chacotas para mim.

Confesso de coração, que apesar de seus maus tratos, enchimentos de saco eu não guardo nenhum rancor seu e sempre comento que suas loucuras me serviram de incentivo para que eu criasse vergonha e estudasse para ser aprovado na Escola de Especialistas de Aeronáutica (EEAR) como pretexto de livrar-me de suas loucuras.

Certa vez no ano de 1974, quando eu já estava aprovado na EEAR, aguardando desligamento, aconteceu um entrevero entre mim e ele, que poucas pessoas tomaram conhecimento, primeiro pela gravidade do problema, segundo pelas minhas próprias características de achar que meus problemas são meus e não devem servir para conversas banais e nem servir para pessoas que falam demais. Declaro que até hoje, sinto-me bastante constrangido em abordar este fato deprimente em que estive envolvido.

Eu lembro nitidamente como se fosse hoje daquela fatídica reunião entre o sargento encarregado da Seção de Bombeiros e todos os cabos da especialidade de bombeiro para tratarmos de assuntos relativos à instrução de uma nova turma soldados. Nós estávamos todos sentados em torno de uma mesa na Seção de Pessoal, eu ocupava a cabeceira da mesa ao lado do sargento, posição esta, melhor para uma saída de emergência, já que naquele dia eu estava de serviço de chefe de equipe. A reunião transcorria na mais perfeita harmonia, quando de repente um soldado apareceu correndo e interrompe pedindo licença e comunicou que o soldado Menezes estava provocando vômito e havia desmaiado. Da posição que eu estava fui logo tratando de pegar o telefone para ligar para emergência do hospital. Eis que de repente fui surpreendido pelo carcará sanguinolento que num único sopapo tirou-me das mãos o telefone e foi logo dizendo: pode deixar morrer que eu me responsabilizo; estes cabos daqui só querem ser babá de soldados muitas e outras coisas que o tempo conseguiu delir-me da lembrança. Naquele momento o sangue subiu para a minha cabeça e quando me recobrei eu já tinha levantado a cadeira instintivamente de modo inconsciente e arriado-a sobre o desgraçado, que num ato de alta defesa colocou o braço acima da cabeça. O impacto foi tamanho, que chegou a quebrar o seu relógio. Por instantes fiquei descontrolado, disse-lhe algumas verdades como desabafo, eu ainda tentei atingi-lo com o meu capacete, mas fui impedido pelos cabos, que já me seguravam e acalmavam-me. As únicas palavras que ouvi e vi surgir de seus lábios foram: o que é isso Mesquita? Tendo em seguida mandado me substituir do serviço e me deixado fora da escala por quinze dias. Após o entrevero os cabos me levaram para o alojamento onde chorei bastante lamentando a minha atitude impensada que poderia acabar com o meu futuro nas fileiras da Força Aérea Brasileira, pois eu já havia sido aprovado no concurso para sargento e estava aguardando ordem de embarque para viajar. Contava também com a responsabilidade de um casamento e a esposa grávida de oito meses. Para a minha surpresa o tempo foi passando e nada de eu ser chamado para justificar a intolerância de meu ato impensado, que certamente seria punido e perderia a chance de realizar o meu intento mais cobiçado. Aí então, cada vez mais eu ficava nervoso e ansioso. O sargento não falava nada para mim, tendo me deixado sem nenhuma função, simplesmente à margem, sem pelo menos uma terapia ocupacional para que pudesse por um momento deixar de pensar no problema.

Após quinze dias deste martírio, sem que ninguém soubesse de nada outro cabo bombeiro dirigiu-se ao gabinete do subcomandante da Base chorando e pedindo por tudo para sair dos bombeiros. O subcomandante de imediato pega o telefone e liga para o comandante do Esquadrão de Material e pergunta o que está acontecendo nos bombeiros que se encontrava em seu gabinete um cabo chorando muito nervoso e totalmente descontrolado. O major respondeu para o tenente-coronel que não estava sabendo de nada, mas que iria apurar. Sem pestanejar e muito furioso por não saber de nada sob o que se passava no seu comando, ligou para o sargento encarregado da seção e perguntou o que estava havendo no bombeiro, que ele como comandante não sabia de nada e que tinha recebido uma ligação do subcomandante da Base avisando que se encontrava em seu gabinete um cabo do bombeiro chorando desesperadamente.

O sargento sem imaginar do que se tratava jamais pensava que fosse outro caso, foi logo contando a minha ocorrência: senhor major houve um atrito entre mim e o cabo Mesquita, mas eu achei por bem resolver por aqui mesmo relevando e por considerar que o cabo é casado e estar aprovado na EEAR aguardando desligamento, eu não queria prejudicar a sua carreira, aí então, resolvi lavar a roupa suja em casa entre nós mesmo.

O major sentindo-se traído foi logo dizendo negativo, quero que você se apresente para mim agora juntamente com este cabo. Ao chegarmos ao seu gabinete o major estava furioso, cuspindo fogo pela boca e ir redutivo querendo aplicar punições severas nos dois, o sargento por ter deixado de comunicar um fato tão grave e eu por ter praticado tamanha transgressão. Só sei que foi difícil dobrar a decisão do major, que era de aplicar uma punição de trinta dias de prisão no cabo e também quinze dias no sargento. Caso isso viesse ocorrer estava ali encerrada a minha promissora carreira na vida militar. Graças ao próprio sargento que pediu por tudo para não ser punido, o major após alguns dias de reflexão e reconhecendo o seu trabalho e o meu e compreendendo a minha situação resolveu nos aliviar.

Quero também na oportunidade tornar público e não poderia omitir ou negar que na hora do desespero tentei sensibilizar o major pedindo humildemente chegando até a implorar para que não fosse tolhida a minha carreira, porque em breve dentro de poucos dias eu teria um filho para criar, me apeguei também aqueles militares, que eram conceituados e amigos do referido major para pedirem junto a ele por mim.

No decorrer disso tudo surgiram mil e uma conversas, dentre estas uma talvez valha a pena relatar: diziam os especuladores que o sargento não tinha levado em frente à ocorrência, porque naquele ano tinha dado entrada no hospital da Base quatorze cabos e soldados do bombeiro queixando-se de maus tratos e com o sistema nervoso abalado, por esta razão, o hospital estaria disposto a fazer uma junta para tirar o sargento da Seção de Bombeiros no próximo caso que viesse acontecer e ele vivia morrendo de medo disto, pois no seu íntimo ele preferia a morte a sair dos bombeiros.

Graças a Deus nosso bom Pai Celestial, deu tudo certo não fomos punidos, segui o meu destino, fui matriculado na Escola de Especialistas e me formei sargento, Mas nunca mais me encontrei com o infeliz, às vezes em minhas reflexões eu penso que seria muito bom ter uma oportunidade de abraçá-lo e deixar de lado as nossas diferenças e perdoar sem condição as suas loucuras, porque o verdadeiro perdão pertence a Deus.

ChicoMesquita
Enviado por ChicoMesquita em 05/10/2011
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