DE MÉDICOS E DE LOUCOS_PARTE 5
A ILUSÃO DA IMORTALIDADE_ SÍNDROME DE COTARD

Na enfermaria de certo hospital geral do Estado de São Paulo,onde trabalhei no início de meu exercício na psiquiatria,havia uma enfermaria " piloto" ou " modêlo" ,onde eram internados apenas os pacientes graves,porem em seu primeiro ou no máximo segundo surto psicótico.O objetivo alí era o de prover o paciente de todos os cuidados necessários e disponíveis à época,de modo a evitar-se ou minimizar-ser os sintomas de cronificação,tais como empobrecimento afetivo e desinserção social.Utilizavamos para tanto ,alem das medicações de praxe,o atendimento à família do paciente e tambem medidas socioterápicas , terapia ocupacional e psicoterapia. E foi nesta enfermaria,que o sr.P foi " equivocadamente" internado por um plantonista.Digo equivocadamente,porque P. era já um senhor de setenta e poucos anos,com diversos episódios semelhantes de sua doença no passado,e que não correspondia realmente aos critérios estabelecidos para a internação naquela enfermaria.Porem,como se verá adiante,o caso era tão " interessante" para qualquer psiquiatra,pela raridade da enfermidade,que decidi mantê-lo alí mesmo ,à revelia da equipe.
P. mostrava-se totalmente depressivo, "amuado" ,isolado dos demais pacientes,sem apetite,sem dormir e em precárias condições de apresentação:barba por fazer,sem tomar banho,emagrecido e abatido.O que no entanto chamou-me a atenção de imediato , foi a temática dos delírios que ele apresentava:dizia estar morto,completamente morto!Dizia que seu intestino parara de funcionar e que seu coração não mais batia.Que não respirava e que era,em resumo,um " morto-vivo",um cadáver ambulante.Um tipo raríssimo de delíirio de negação em que,acreditando que esteja morto,o paciente confere a si mesmo a ilusão da imortalidade.
Lembrei-me de imediato do psiquiatra francês Jules Cotard(1840-1889) que em 1880 descreveu uma síndrome raríssima caracterizada por delirios de negação,em que o paciente tinha a certeza de que estava morto ou apodrecido por dentro,posteriormente denominada " síndrome de Cotard" .Tal síndrome,presente em depressivos graves,psicóticos e em pacientes bipolares é muito rara.Muitos psiquiatras talvez nunca se deparem com um paciente portador desta doença ao longo de sua vida profissional.
No caso de meu paciente SR.P., iniciamos o tratamento de sua depressão ,utilizando-nos na época dos antigos antidepressivos,ainda hoje utilizados em menor escala,chamados TRICÍCLICOS, que são medicamentos potentes porem com muitos efeitos colaterais.
Durante quinze dias as doses de medicação de P.foram lentamente aumentadas,até que ,já com dose máxima e sem nenhuma melhora significativa, o SR.P procurou-me dizendo:

_DRA,eu sofro de SÍNDROME DE COTARD"....Nas vezes anteriores em que fui internado,eu só melhorei com sessões de eletrochoque.A medicação não vai resolver meu problema.....Quero fazer eletrochoque.

Àquela época,meados da década de 80,eletrochoque ou E.C.T. como abreviamos,era ainda associada erroneamente por alguns profissionais de saude mental,como tratamento coercitivo,apesar dos benefícios inequívocos da terapêutica em pacientes graves e com risco de suicídio,abreviando-lhes o tempo de recuperação.Esse preconceito contra o ECT vinha dos " anos de chumbo" em que o Brasil amargou uma ditadura militar,tendo sido o E.C.T inadequadamente utilizado por psiquiatras inescrupulosos que trabalhavam nos porões do D.O.P.S,a serviço da tortura de presos políticos. Com isto,uma terapêutica das mais eficazes e que hoje é utilizada com critérios rigorosos ,mediante aceitação por escrito de familiares e do proprio paciente,e sob indução anestésica,passou a ser deixada de lado.
Tumultuei a equipe em nossa reunião semanal quando coloquei o pedido de P,de que o ajudássemos mediante sessões de ECT.Psicólogas ,assistentes sociais,,psiquiatras,enfermage
m,terapeuta-ocupacional,todos em discussões acaloradas e ideológicas,contra o ECT, que aquela altura já estava eu providenciando ,atraves de um aparelho emprestado de outro hospital.Era tanta falácia,tanta divagação,tantas questões teóricas ,que o desejo expresso de meu paciente ficou esquecido de todos.Porem não do Sr.P. que, após as sessões iniciadas no centro cirurgico, principiou a melhorar.Já não se considerava mais morto,nem paralisado por dentro,embora ainda se mantivesse depressivo.Foi então que surgiu a ideia minha e do paciente de transferi-lo,a bem dele mesmo,para outra instituição,onde fosse melhor ouvido pela equipe,sem a confusão gerada pelo preconceito em torno do seu tratamento.A instituição escolhida foi uma enfermaria de psiquiatria de conhecida Universidade,que acolheu meu paciente com grande interesse e onde este permaneceria durante ainda algumas semanas até concluir seu tratamento.
Semanas mais tarde soube por um professor da Universidade que P '"estava fazendo o maior sucesso junto aos acadêmicos" pois , já melhor,falava de sua síndrome raríssima com grande desenvoltura e riqueza de detalhes dando verdadeiras " aulas" de sua doença aos estudantes que o cercavam interessadíssimos em aprender.Deixara para traz, num compartimento isolado de sua mente,a idéia de ser um morto-vivo e por conseguinte,a ilusão de ser imortal.

Marcia Tigani_ outubro 2011


 

MARCIA TIGANI
Enviado por MARCIA TIGANI em 03/10/2011
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