SOBRE SAUDADE E CANÇÕES

Inspirado por meu escritor preferido, o checo Milan Kundera, que no romance "A Ignorância" trata do encontro entre Josef e Irena, no aeroporto de Paris, resolvi falar um pouco de saudade. Os personagens são checos e viveram uma história de amor no passado, em Praga. Agora, estão voltando do exílio na França. Caiu o comunismo. O leste europeu está livre do domínio soviético. Mais do que uma história de amor, é um livro sobre a memória, sobre a nostalgia. Para Kundera o sentimento nostálgico liga-se também à ignorância. Para o romancista só há nostalgia daquilo que não temos mais notícia. Nostalgia é o que mais se aproxima da palavra saudade em qualquer idioma do mundo.

Não quero falar exatamente de nostalgia. Meu assunto é saudade, esse colosso encontrado apenas na Língua Portuguesa. É como se franceses, alemães, chineses e marroquinos fossem proibidos de entender e codificar aquele sentimento que implode nosso edifício interno. É como se Deus, sectariamente, nos ungisse como o único povo digno de experimentar a sensação da palavra saudade. É uma dor exclusiva de brasileiros, portugueses, angolanos e outros poucos povos mais.

Como a saudade habita apenas o coração da Língua Portuguesa, fiz um passeio pela música brasileira para entender a forma que nossos poetas expressaram o dolorido sentimento. Vinícius de Moraes, em "Chega de Saudade" diz: “Chega de Saudade/A realidade é que sem ela/ Não há paz não há beleza”. Renato Teixeira, em "Saudade", canta: “Se queres compreender/ O que é saudade/ Terás que antes de tudo conhecer/ Sentir o que é querer e o que é ternura/ E ter por bem um grande amor viver”. Ainda na linha da dor de cotovelo, Lupicínio Rodrigues, em "Felicidade", poetiza: “Felicidade foi-se embora/ E a saudade no meu peito ainda mora”. Chico Buarque, com sua maestria, compôs em "Pedaço de Mim": “Oh, pedaço de mim/ Oh, metade arrancada de mim/ Leva o vulto teu/ Que a saudade é o revés de um parto/ A saudade é arrumar o quarto/ Do filho que já morreu”. Para mim, a letra mais forte, mais fúnebre sobre saudade que o coração humano concebeu. Chico compara a saudade da amada à saudade da mãe que perde o filho, no momento que vai arrumar seu quarto. Imagino que seja uma saudade violenta, sem qualquer freio, uma saudade sem limites.

Mas não foi só para chorar a falta da mulher amada que a saudade foi convocada pelos letristas brasileiros. Um dos casos mais tocantes é a música "Naquela Mesa", composta por Sérgio Bittencourt para homenagear seu pai, Jacob do Bandolim. Bittencourt teria escrito a canção em um guardanapo, no dia do falecimento de seu pai, em 1969. “Naquela mesa tá faltando ele/ E a saudade dele tá doendo em mim” cantaram Elizeth Cardoso e, depois, Nelson Gonçalves. Simples, profunda e comovente.

Mas a saudade não é só dor e tragédia. Nem sempre é desespero e melancolia. Às vezes a saudade é um sopro suave a nos visitar, a nos acolher em seu seio. Roberto Carlos em "Outra Vez" nos dá uma mostra de como a saudade pode ser algo belo e sereno. “Das lembranças que eu trago na vida/ Você é a saudade que eu gosto de ter/ Só assim sinto você bem perto de mim”. Assim é a saudade, anjo ou demônio, luz ou trevas, mas sempre soprando vida nas narinas do cadáver que um dia foi, talvez nosso mais palpável pedaço de alegria.

Anderson Alcântara
Enviado por Anderson Alcântara em 03/10/2011
Reeditado em 03/10/2011
Código do texto: T3256192