História de um menino esquisito
Essa história que vou contar é uma história muito boa, muito mesmo. É a história da minha vida. É bem verdade que é uma vida ainda pequena, tenho só dez anos. Mas apesar de curta, posso lhes garantir que é uma história bem legal.
Meu nome é Andrei e eu tenho uma irmã gêmea que se chama Lila. Se você algum dia reclamou de seus irmãos, mas não é gêmeo como eu, nem imagina o que eu passei na barriga da minha mãe.
Para começar, aconteceu que eu resolvi ser gentil e deixei a minha irmã ficar em cima de mim. Até hoje não sei como ela me convenceu que assim era melhor, mas enfim, aceitei carregar a “mala” os nove meses. É, amigos, só nasci depois de 39 semanas. 39 semanas com aquela uma, “trepada” nas minhas costas! Minha mãe, não satisfeita, resolveu tomar o maior tombão lá pelos sete meses da gravidez e nós lá dentro achando que era o apocalipse...
Bem, tenho que confessar que um dia eu cansei. Cansei daquele negocio de levar minha irmã em cima de mim. Fiquei tão cansado que meu coração deu uma freada básica. Ficou batendo mais devagar, sabe? E esse freio acabou dando bode... quase que eu bato as botas! Ainda bem que Papai do Céu ” tava ligado” ...
A gente nasceu daquele jeito que é cortando a barriga da mãe, tal de cesariana. Quando me tiraram eu tava bem mal, cara. Nem tinha folego para chorar. E foi aí que começaram os meus problemas com as provas. Meu Apgar foi 5, faltou oxigênio no meu cérebro. Reprovado logo na primeira prova. Isso não deixava de ser um sinal.
Você pode até achar que eu estou exagerando, mas é verdade. Eu sou um cara premiado. O pessoal lá no hospital deu tanto mole, que eu acabei ficando com uma tal de hipoglicemia (nomezinho esquisito) e deu uma hemorragia no meu cérebro. É, aquele mesmo que já tinha ficado sem ar. Então, meu pobre cérebro mais parece um queijo suíço de tanta marquinha que tem. O quê que deu isso? Te conto adiante.
Fiquei 41 dias no hospital. Numa tal de UTI. Minha mãe e minha irmã foram embora e eu lá. Ninguém merece! Era tanta sacanagem que faziam comigo que vou pular os detalhes daqueles dias. Só um não vou querer esquecer. Tu sabe que teve um médico que falou pra minha mãe que não sabia se valia a pena eu sobreviver? Fala sério maluco, vou perguntar à mãe dele se ela acha que valeu a pena ELE sobreviver.
Depois de um começo tão complicado você já deve estar imaginando que eu, o cheio de problemas, não tive mais sossego, né? Saí do hospital, mas até hoje não tive alta. É verdade que eu não fiquei muitas vezes internado depois disso. Por dois motivos, principalmente. Eu não sou o fracote que disseram que eu seria e meus pais querem distância de médicos, enfermeiras e tudo mais que tem no hospital.
Já que nunca tive alta, faço tratamento há dez anos, já conheci tanto terapeuta nessa vida que pareço cadastro de emprego em clinica. Mas essa galera foi muito bacana comigo, tirando a “mala” da fono lá da AFR, as outras gatinhas e os poucos cuecas que me trataram foram gente muito boa. E eles me ajudaram pacas. As mais especiais cuidam de mim até hoje. Aproveito para mandar um grande abraço e um beijão daqueles meus para esse pessoal todo, valeu mesmo!
Todo mundo que me conhece sabe que eu sou um bocado esquisito. Falo tudo bagunçado, faço um monte de besteira. Bato na cabeça, mordo o braço. Mas sou um cantor e batuqueiro de primeira e dou beijinho fácil, fácil. Minha mãe diz que eu tenho carisma. Sei lá o que é isso, mas deve ser a reação que as pessoas têm quando eu chego. Ninguém resiste ao meu charme...
Meus medos, por exemplo, eu não tenho medo de cair de uma escada bem alta, de ser atropelado, de me perder e nem de bicho nenhum. Mas tenho medo de fazer cocô e me encolho todo se alguém se aproxima muito rápido. E tem aqueles medos doidos, como do sabonete branco, da colcha muito estampada e daquele anúncio do supermercado.
Eu sou mesmo um cara estranho. Ainda faço xixi na cama, não consigo me vestir sozinho, ainda, nem aprendi a escrever com lápis. Mas aprendi a ler sozinho quando tinha 4 anos, sou capaz de decorar todos os diálogos de uma centena de filmes e “tiro o som” das músicas de ouvido e usando meu próprio corpo! Mas para o mundo eu sou “deficiente”. Eu, né?
Quando se trata do que eu gosto eu sou irredutível e insaciável. Comer só se for com a boca bem cheia. Biscoito recheado eu enfio inteiro na boca. Parece uma hóstia. Se o brinquedo fala ou toca música, eu fico repetindo até a pilha acabar. Se um gatinho fica miando ou um passarinho cisma de cantar, o barulho me incomoda tanto que eu grito bem alto. Aí, incomodo os outros, que é para eles verem como é bom ficar incomodado.
Mania eu tenho algumas... muitas... milhares! Vou te contar só umas: vigio se fecharam a tampa do vaso sanitário, mas vigio mesmo. Tem vezes nem espero quem está usando levantar, fico empurrando. O meu DVD e a minha TV devem ficar ligados o tempo que eu estiver acordado. E se eu decidir tirar só um cochilo é bom não desligarem não, pois eu acordo um bocado furioso. Curto ficar sentado nos degraus da escada jogando bolinhas e outros objetos para vê-los rolar pelos degraus. Tenho até medo de contar isso e algum terapeuta de plantão ler. Aí eu tava lascado mesmo.
Me mandaram para a escola muito cedo porque eu estava “me isolando”. Fico pensando: um camarada não pode nem gostar de curtir a si mesmo que já vem um bando de gente para dizer que é isolamento. No fim, foi legal ter ido para a escola, a Lila também curtiu. Pelo menos isso.
Às vezes penso que a escola em que estudo já descobriu as vantagens de acolher os NEEs como eu. Eu ajudo os meus colegas e se desenvolverem, aceitando melhor as diferenças e de quebra minha turma arranja mais uma professora. Minha professora de apoio. Eu me dou muito bem com meus colegas de escola. Sério, mesmo “especial”.
Estou me lembrando de uma época que cismaram de dar um nome para as minhas esquisitices. Fechar o diagnóstico, diziam. Muitas dúvidas, muita briga e um rompimento, esse foi o saldo final. Cara, minha mãe e meu pai são um bocado bravos quando se trata de defender a gente!
Saí da AFR porque eles queriam me enquadrar numa gaveta que eu não cabia. Minha mãe fala isso, mas eu não sei o que quer dizer. Só sei que desde então, afirmam o meu “espectro autista”. Alguém sabe se isso é de comer? Ou é de passar no cabelo? Bem percebeu e falou a tia Rosa, maluco eu sou mesmo! E assim vou ficar (com certeza, maluco beleza).
Tenho pensado nesse tal de autismo. Será que essa minha linguagem diferente é o autismo? Ah, deve ser a mania de brincar com meus dedos. Isso também tem nome gozado: estereotipia. Será por isso que sou autista? Meu comportamento social não deve ser. Falo com todo mundo! Será que exagero? Será que é porque não trato desconhecidos como invisíveis?
E no fim, o isolado e diferente sou eu. Sou, mas quem não é?
Ps.: texto livremente inspirado nos intensos e inesquecíveis dias de convivência com o personagem.