Parece uma cachorra

Fomos ensinados, desde pequenos, a olhar as coisas sempre de um mesmo ângulo. O respeito pelos mais velhos nos proíbe os questionamentos e nos convence a aceitar respostas prontas. Apesar de ter nossos sonhos castrados a situação se torna cômoda com o tempo. É confortável estar sempre à sombra de alguém a quem se possa transferir as responsabilidades, apoiar-se ao convencional, aceitar de cabeça baixa regras e normas tornadas leis pelos códigos ou simplesmente pela tradição. Mas isso torna nossa percepção muito restrita. Como se usássemos aqueles óculos de quem trabalha com carroça: ante-olhos. Olhamos para as coisas e não acreditamos que são o que são.

Perdoe-me se não conseguir ver nexo com o assunto, nos fatos vulgares que passo a contar: nos meus tempos de menino, quando residia nas imediações do grande largo gramado que veio a se tornar praça Mário Ernesto da Silva, o espaço era sempre ocupado por ciganos, parques de diversões e circos. Os parques chegavam a ser rudimentares, pequenos carrosséis e canoas balouçantes fabricados em ferro e madeira, jogos de argolas e tiro ao alvo com ar comprimido e um serviço de auto falante que se resumia a uma vitrola rodando os deliciosos bolachões (discos de vinil) gravados nos anos sessenta e setenta, ligada a um auto falante suspenso num mastro, tipo corneta, desses ainda usados pelos caminhões de melancia. Os rapazes ofereciam às moças através desse sofisticado sistema de som, “como prova de amor e amizade,” canções como O Mais Importante é o Verdadeiro Amor e Mon Amour, Meu Bem, Ma Famme. Eu apreciava o cordão de luzes incandescentes, o cheiro de pipoca e amendoim torrado. Quando o parque ia embora o grande largo ficava em estado de desolação, envolto em silêncio e escuridão.

Mas quando chegava o circo é que era bom de verdade. A molecada se juntava para ver o grande barracão de lona ser erguido nos dois mastros centrais e já começava a juntar as moedas para as matinês. Incrível a rapidez com que os saltimbancos se instalavam! Me fascinava as bandeiras tremulando no cimo dos mastros, as luzes coloridas, os palhaços, os trapezistas, as bailarinas e assistentes em trajes brilhantes (que os mais velhos diziam indecentes), o infalível cheiro de pipoca, cartuchos de amendoim torrado, maçãs carameladas. As arquibancadas de tábuas toscas, a alegria das pessoas. Tenho saudade do gosto que eu tinha por essas coisas.

Numa tarde o circo chegou. Ficamos abismados com o número de caminhões carregados de equipamentos. As barracas de acampamento, os ônibus residência (conforto reservado aos artistas), lonas novas azuis com listras brancas, decoradas com estrelas amarelas e vermelhas. Aquele circo tinha ainda uma coisa mais impressionante que os anteriores: animais. Muitos animais. Macacos, leões, tigres, dois elefantes. Uma coisa estupenda.

Ficamos a tarde inteira olhando o rebuliço que faziam todos aqueles bichos espremidos em jaulas malcheirosas. Lembro-me que numa jaula havia, presa no mesmo compartimento uma dupla inusitada: um enorme leão africano e uma cadela dóberman também de grande porte. O leão tinha vasta juba avermelhada, bigodes longos e olhos sonolentos. Parecia muito velho e manso. A cadela, de um negro brilhante, parecia jovem e feroz pela intrepidez que deixava transparecer pelos olhos e pelos modos.

De tardinha, o Zequinha que voltava da fábrica de sapatos, arrancando com os dentes os sobejos de cola forte grudados aos dedos (esse era um vício comum a todo ajudante de sapateiro), surpreendeu-se com o circo já armado e a multidão que se aglomerava ao redor das jaulas. Parou boquiaberto diante do compartimento da estranha dupla, os outros circunstantes ficaram observando suas reações em silêncio. Ficou quedo, tentando assimilar o que na verdade estava vendo, como a idéia de uma cachorra conviver pacificamente com um leão fosse contra todas as suas convicções, ele apenas comentou:

_ Meu Deus! Parece uma cachorra

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 03/10/2011
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