O HOMEM DA PONTE
A minha infância foi parecida com a de qualquer guri. Fiz incríveis descobertas, brinquei com carrinhos, estudei, ajudava em pequenos afazeres domésticos, idolatrava meu pai e tive bons amigos. Um fato tornou minha meninice um pouco diferente da de outros garotos que eu conhecia: os monstros que acreditávamos. Nunca fui de acreditar em mula sem cabeça, saci pererê, chupa-cabra, bicho papão e outros seres igualmente medonhos.
Eu acreditava e temia o homem da ponte. Meu monstro era de carne e osso. Apesar de eu nunca ter ficado cara a cara com ele, eu sabia da sua existência, tinha ouvido a sua voz e seus passos. Eu liderava um grupo de meninos, todos se imaginando verdadeiros ninjas japoneses, inspirados nas histórias de Jiraya, que passava na TV Manchete. Morávamos no bairro Dona Fiíca, que era o divisor de águas entre a civilização e a selva, como definíamos o pé da serra, com seu córrego, matas, brejos e mistérios.
Acontece que havíamos descoberto a Casa Branca. Naturalmente, não estou falando do palácio presidencial norte-americano. A nossa Casa Branca era uma propriedade abandonada que ficava encravada no coração da serra. Diversas teorias e lendas cercavam a Casa Branca: lá era reduto de fantasmas, monstros, marginais, enfim, o que a nossa imaginação conseguia inventar. De certo apenas que tinha duas mangueiras e três goiabeiras. Tudo isso despertava muito interesse na nossa trupe. Era o suficiente para juntarmos a gangue e empreendermos uma romaria até a serra, até a Casa Branca. Só que para chegar lá tínhamos que passar por cima do homem da ponte. Literalmente.
O homem da ponte era uma espécie de ermitão, que havia abandonado a civilização para se instalar embaixo da ponte. Lá era a sua casa. Em outras palavras, era o dono da ponte. O pedágio que tínhamos que pagar era respeitar o mais profundo silêncio durante a travessia. Ele possuía uma bicicleta que nos imputava muito medo. Construída por ele mesmo, rezava a lenda, era uma máquina de perseguição, com poderes além dos normais de uma bicicleta.
Um dia descobrimos que ele havia ido até a cidade para fazer compras ou sabe-se lá o quê. Aproveitamos a sua ausência para bisbilhotarmos a sua casa. Entramos no terreno inimigo. Era uma emoção sem precedentes para nossas vidas. O coração batia como coração de bandido. Ele não era exatamente um cidadão do nosso tempo. Seu fogão era feito de pedras e varetas de pau, sua cama era um velho colchão em um canto da ponte, seus pertences cabiam todos em uma pequeno e paleolítico baú. Não lembro de ter visto pinturas rupestres ou restos de animais pré-históricos, mas tenho certeza que ali morava um homem de Neandertal que não havia conhecido nenhum estágio de evolução. Ele fora simplesmente atiçado para o nosso tempo, sem qualquer ajuste ou informação.
O dia de ir à Casa Branca era sempre um dia diferente. Mistério e emoção tomavam conta de nós. Fazíamos uma reunião prévia para discutir as estratégias de escaparmos do nosso terrível algoz. Talvez fosse interessante que a prefeitura tivesse construído uma ponte extra para ninguém incomodar o homem da ponte em seu lar doce lar. Mas creio que uma prefeitura tem mais coisas para se preocupar do que com os monstros de um grupo de meninos. Não tínhamos o poder público do nosso lado. Tínhamos que ir à luta sozinhos. Nos equipávamos como se uma guerra nos esperasse. O pior é que o terror se instalava duas vezes: na ida e na volta. Chegar em casa vivo, com um saco de mangas e goiabas e histórias para contar era simplesmente a maior aventuras de nossas vidas.
Hoje, não há mais o homem da ponte. Pior que isso: não há em nós, homens formados, qualquer menino que acredite no homem da ponte e suas terríveis armas de destruição. Há apenas a ponte, sem o seu encanto e terror, sem o que fazia dela um portal para o mundo da fantasia.