Mais por atos que com palavras

Subi com ela a ladeira que leva à área de invasão, onde inúmeras famílias estavam arranchadas há meses em barracos improvisados. Aos setenta e cinco anos ela parecia não se cansar nunca, tendo a muito concluído suas obrigações familiares, em pleno gozo de sua merecida aposentadoria, ocupava-se agora do trabalho humanitário. Não era do tipo que fica oferecendo cestas básicas para desencargo de consciência, favorecendo a apatia e estimulando a mendicância. Junto com o paliativo de sua pequena ajuda material, ala sempre levava uma lição de coragem e de gosto pela vida. Sua própria presença à frente de batalha contra a desigualdade de condições dos brasileiros, por si só, já era uma grande lição. Para melhor desempenho de seu trabalho, recorria à ajuda de terceiros quando se fazia necessário, e o fazia com a autoridade de quem sabe o que está fazendo. A mim, ocupava quando precisava de condução:

_ Preciso que me leve a um lugar hoje. Escolha a hora que for melhor para você.

É claro que diante do direito de escolher o horário que melhor se encaixasse na minha agenda de pobre trabalhador assalariado, eu nunca me achava capaz de negar-lhe o favor. Ela ainda acrescentava depois da minha resposta afirmativa.

_ Quando lhe surgir uma oportunidade de fazer o bem, nunca a desperdice. Estará adquirindo um patrimônio imperecível.

Com ela eu aprendi a importância, para a vida de qualquer pessoa, dessa incrível mola propulsora chamada, hoje em dia, de motivação. Mudei de atitude até para com os meus próprios filhos. Passei a ensina-los que tudo tem um preço. Que as coisas não caem do céu. Que não há prosperidade sem trabalho, nem sucesso sem esforço pessoal.

Naquela tarde de chuva fria e contínua, ela estava indo conhecer a vida de uma jovem mãe que havia ido até sua casa pedir roupas para seu recém nascido. Porque era assim que ela agia: gostava que sua ajuda fosse efetiva e não simplesmente afetiva. Ia conhecer de perto a situação e tentava eliminar as causas e não os sintomas do problema. Essa coisa infrutuosa que ela chamava de só, mais atrapalha que ajuda.

Compadre meu que envelheceu na luta contra as desigualdades sociais, de quem, a conselho de Salomão, tenho gastado a soleira da porta, me disse que dó é diferente de amor. Amor estimula, motiva, faz prosperar. Dó pega no colo, passa a mão na cabeça, cultiva a inação. Transforma o objeto numa pessoa incapaz. Dó pode até ser tolerada, desde que temperada com muito amor.

Chegamos a pequena casa de telhado de amianto. Ela entrou no quintal fechado de tábuas velhas e folhas de lata, onde o capim vicejava por toda parte num visível desmazelo. Conversou demoradamente com a dona da casa enquanto eu a esperava no carro. Não sei o que disse a ela mas, imagino que falara algo sobre higiene, porque quando voltou ao carro mencionou algo sobre o quanto ela precisava aprender sobre o assunto. Vinha trazendo numa sacola algumas peças de roupas que apanhou na lama do chão, mostrou-me uma a uma. Eram todas de criança entre as quais havia um manto de lã ainda em bom estado apesar de enlameado. Não pude imaginar porque levava aqueles trapos cobertos de lama, até o dia em que ela novamente me ligou:

_ Preciso que me leve a um lugar hoje. Escolha a hora que for melhor para você.

_ Claro. Pode ser às cinco horas.

_ `Ótimo. _ Quando lhe surgir uma oportunidade de fazer o bem...

Subimos novamente a viela íngreme rumo ao barraco. Levava uma grande bolsa cheia de roupas de criança, entre elas, as que apanhara no quintal da própria assistida. Lavadas, alvejadas e bem passadas. O milagre da vontade humana havia as tornado como novas. Mais com atos que com palavras, ensinou aquela mulher pobre que sua miséria tinha um porquê.

A mim ensinou que conquistar bens pode ser mais fácil que dar-lhes o devido valor.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 01/10/2011
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