Quarenta gramas de felicidade

A fumaça da infusão perfumada de mate atingiu-lhe as narinas ressuscitando lembranças antigas, a muito adormecidas em algum recôndito da alma. Alguns cheiros têm a propriedade de nos fazer viajar no tempo e no espaço. Quem não é, de repente, despertado por um cheiro específico no meio de uma multidão? O perfume de uma pessoa de quem tenha desfrutado a companhia, o cheiro da terra que, tombada, expõe raízes, o aroma dos pratos de alguém que já se foi há tempos. Ah! A dádiva dos sentidos! O prazer da visão de uma imagem, um quadro, uma escultura, o rosto de uma pessoa muito linda. A textura de um objeto ao contato com a pele, o sol, o vento, a água do mar, o cobertor. O som de flautas, violinos, bandolins, trinados diversos, uma voz melodiosa. O sabor das melhores frutas, o mel, o vinho, o sorvete. Presentes de que nos cumula a Natureza, dia a dia. Toda hora. E que nossa insensibilidade, por vezes, menospreza.

Derreou-se pesadamente na rede da varanda, o pequeno volume de Fernando Pessoa esquecido debaixo do braço, aguardando a luz da manhã para ser lido. Era ainda escuro. O sol nascente esbarrava-se com espessa camada de nuvens. O lago e as árvores mal se delineavam apesar da proximidade. Um sabiá madrugador saudava o dia com seu canto melancólico. Pensamentos fragmentados ocorriam-lhe sem nexo algum: lera que o sabiá tem a audição tão apurada que pode ouvir uma minhoca debaixo da terra. Será? Ergueu a cuia levando a bomba aos lábios, sorveu um gole da bebida quente e amarga brindando seu organismo com um profundo bem estar. O chimarrão era um habito que havia adquirido com um gaúcho, antigo colega de trabalho, ainda do tempo da fábrica. Reconheceu num estalo o momento mágico que estava vivendo. Raríssimo por depender de inúmeras condições desde o ambiente propício até o gosto pessoal. Quarenta gramas de prazer em cada cinco toneladas de vida.

Lembrou-se do barbeiro lá do Planalto, um desses heróis do cotidiano que sobrevive às procelas caminhando sobre a corda bamba. Barbeiro há muitos anos, agora está conciliando esta profissão com a de motorista de caminhão na mina de ouro do Casquilho. Ele retira toneladas de pedra triturada do interior da mina para a apuração do precioso metal. Sabemos que a proporção média é de quarenta gramas de ouro por cinco toneladas de pedra triturada. O brasileiro não é mesmo uma figura fantástica? Estamos falando de um que concilia uma ocupação que exige sensibilidade e leveza com outra que exige coragem e força.

Todo barbeiro é também um cronista, ele está impregnado dos fatos ao seu redor. O freguês na cadeira, outros tantos aguardando. Surge determinado assunto, arma-se um debate, o barbeiro acompanha, pára o trabalho, entra na conversa brandindo no ar a navalha, enquanto defende sua posição, outro retruca, ele volta ao trabalho enquanto ouve. Outros entram no debate, a discussão acalorada chega ao ápice. Esvai-se de repente, outro boato vem à tona, o freguês da cadeira tem mais informações, tem preferência por aquele assunto. O barbeiro vai colhendo informações e se tornando apto a entrar em outras discussões futuras.

O sol aos poucos vai vencendo a escuridão, agora já é possível ver o espelho do lago ainda embaçado pela bruma da manhã. Um vento frio anuncia chuva, balançado as folhas do buritizeiro. A bomba ronca. Ele reabastece a cuia de água quente, todos na pequena cabana ainda dormem. O sabiá insiste em seu canto dolente. Toma impulso com o pé, o ranger da rede ganha intensidade. Manhã de domingo, de alegria promissora. O frango caipira no fogão de lenha, a mulher contente, os filhos ao redor de si, a chuva fina no telhado, a visita do compadre, a moda de viola...

Na segunda-feira, pertencerá à cidade. Enfrentará novamente a vida urbana, o trânsito, o corre-corre das pessoas acossadas pelo relógio, a poluição sonora, mas... Por enquanto estava colhendo seus quarenta gramas de felicidade.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 30/09/2011
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