Incongruências
Quando eu era criança, ali pelos seis anos, a religiosidade de minha família não ia muito além de um terço de vez em quando, uma visita anual ao santuário de Bom Jesus de Matosinhos, alguns quadros que muito me aterrorizavam como um que representava o purgatório e outro o dilúvio, também sobre a cama de meus pais pendia um pequeno crucifixo cuja imagem do Cristo parecia fundida em estanho com grandes deformidades, como a cabeça torta e o nariz esborrachado. Aquela figura grotesca representava Deus para mim. Sobre ela ainda haviam algumas particularidades que muito me intrigavam: sua bondade era infinita, mas todos os nossos infortúnios eram sua vontade. Eu não conseguia entender tamanha incongruência. Quando morreu, aos oito anos, meu irmãozinho mais velho que eu, minha mãe me explicou que Deus o havia levado, assim eu aprendi que Ele podia me causar grandes prejuízos. Essa confusão de interpretações do que Deus é ou deixa de ser, as pessoas adultas a fazem também, mesmo as mais esclarecidas sobre o assunto estão sempre se divergindo, tentando explicar o inexplicável.
Por falar em incongruências, lembrei-me de uma pessoa. O homem mais educado que já conheci e também o mais inculto (Coisa esquisita, não?) chama-se José Coelho. Sua fala é quase um sussurro, os gestos moderados, o andar leve sem qualquer ruído para não incomodar. Tira o chapéu diante dos mais velhos ou ao entrar em qualquer casa. Trata a todos de senhor ou senhora, sem distinção de idade ou posição. Não recebeu instrução alguma mas aprendeu algo essencial: tratar os outros com respeito. Penso que deveríamos fazer uma distinção entre instrução e educação. Tenho pensado nisso sobretudo depois do dia em que um médico quis “sair na porrada” com o paciente porque este, doente mental em delírios por falta de atendimento, estava naturalmente perturbando a unidade superlotada. Sair na porrada foi a expressão usada pelo acadêmico.
Em alguns dicionários podemos encontrar a palavra criação como sinônimo de educação. Faz sentido pensar que a escola está criando cidadãos, mas penso que criar ainda deveria ser papel dos pais. Logo, educar é tarefa dos pais, da família. Se bem que ultimamente a idéia de família também está meio desvirtuada. Hoje há quem defenda maternidade independente e uma porção de inovações com relação ao que chamam de casamento. Aliás, casamento também é coisa do passado. O normal agora é acasalar-se. Chamam a isso de amor sem compromisso, como se fosse possível. Estaríamos voltando às nossas origens? A escola ficaria com a tarefa de instruir, transmitir conhecimentos, tendo o cuidado de não destruir o trabalho da família, uma vez que tem fracassado em educar. Sem generalizar, quanto mais instrução menos polidez. (Polidez também é sinônimo de educação).
Desculpem. O assunto está ficando sério. Em outras palavras mais educadas nos conceitos atuais: esse papo tá ficando um saco. Vou tentar me ater ao nosso personagem. Mas o que tem ele a ver com toda essa litania?
Age como a criança que eu era, em certos aspectos, tem também a sua maneira peculiar de ver Deus. José coelho e eu tínhamos um amigo comum, que morreu há alguns anos num trágico acidente de carro. No jardim da casa desse amigo havia uma linda estátua de Vênus, uma mulher lindíssima com os belos seios expostos. Pois o José postava-se diante da deusa grega, tirava o chapéu, benzia-se e ficava por longo tempo numa muda contemplação. Era a sua forma de rezar. Talvez ele visse naquela estátua a imagem da Virgem. E talvez ele olhe a beleza das mulheres pela rua com a mesma pureza e simplicidade de coração com que fazia aquela singela reza. Será ele um idólatra? “O coração humano é terra onde ninguém pisa.”