A QUARTA ONDA

Trinta de setembro, sexta feira de primavera, o inverno finalmente teve vim.

Dormi cedo, acordamos cedo. Eu mergulhado na infinidade dos outros eus, fui andar na praia para tentar colher alguma cor. O dia nascia cinza.

Logo percebi quatro movimentos desenhados pelas ondas em forma de ondas na areia. Me pareceu o mar ao avesso. Me coloquei no lugar de Palomar e observei tentando refazer a leitura de uma onda.

A primeira, uma marca seca na areia, tem volume de mais de um palmo e nela as pegadas não desaparecem tão rápido. A segunda onda desenhada na areia é apenas úmida enquanto a terceira é líquida, instável e móvel, resultado incansável da gravidade que faz as águas retornarem para o fosso do oceano. E finalmente, a quarta onda sobre a qual me detive. Essa última onda me pareceu um convite para o profundo, o inesgotável e insondável começo.

Uma gaivota matava a fome no pescado, uma coleção de Bem-te-vis fazia coreografia às margens da segunda onda, aquela apenas úmida. Tenho especial carinho pelos Quero-queros, mas, na praia, nem os esperava, muito menos de pernas tão longas. Assim pernudos assemelham-se às garças, resultado das inúmeras bifurcações da evolução natural que os permitiu trafegar tranquilamente na terceira onda. Nem os incomoda o suave e constante movimento da água sobre aquilo que veio desenhar, bordando com espuma, até borda da terceira onda. Esse movimento leva areia e deixa quase a mostra algo vivo pulsante que pode ser boa refeição. E é assim, com essas pernas longas, que caminham rápido e param logo, tremem toda a estrutura de seus corpos que termina nos pés ligeiros, os pés dos quero-queros. Uma vez localizada a refeição, essas aves se inclinam na velocidade da luz quando o bico decide e não hesitam, zzzas!!!

A quarta onda se multiplica em inúmeras outras para dentro do mar engolido por si.

As cores que vim buscar já começavam a brotar no céu. Do céu nos vem tudo, a luz é mana diário que reordena a vida aos nossos olhos famintos. A vida que se torna suportável depois de um sonho que nos acordara antes da hora.

Lá vem os tons de rosa sem pressa alguma. Sem a pretensão egoísta de substituir o azul que, com algum esforço, rompeu o cinza de que tínhamos falado antes.

Não demora, essa luz fará reflexo na areia duplicando tudo em volta e mostrando o redor de cabeça para baixo. Sinalizando para o cuidado que se deve ter ao perceber a redondeza, a estranheza e o semelhante.

É essa cor que passa a me perseguir na volta, uma cor sem nome.

Já recomposto de espírito e acordado definitivamente, apanho algumas cores com a mão. Uma concha rosa, pequena, que mais parece uma pétala. Uma azaleia também rosa atrás de um muro baixo. Flores de uma acácia de cor fúcsia plantada na calçada.

Quando chegar em casa, vou escrever o que aconteceu. Vou precisar de um dicionário para poder usar a palavra “fúcsia“ com propriedade e devo descobri que essa cor é nada mais nada menos que a combinação do rosa com o violeta.

Mas agora refeito, eu em acordo com a infinidade dos outros eus, voltemos. Por outro caminho, pode nos acontecer a sorte do encontro com outras cores já que o cinza foi levado pela quarta onda.

*

*

Baltazar Gonçalves

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 30/09/2011
Reeditado em 19/07/2018
Código do texto: T3249830
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.