ROTINA

 
Crianças para a escola. Marido para o trabalho. Confere os e-mails. Um riso brota pelas letras engraçadas que lê.  Enche a xícara de café, uma lembrança surge com o seu aroma forte. Desfaz do rosto o sorriso e a testa franze. Escova os dentes tirando da língua o gosto amargo da recordação. A notícia do irmão enfermo. Faz uma prece por sua cura. Outra pela paz no mundo. E pela vida. Notícias frescas chegam a todo instante. Aftosa no Paraguai ameaça contágio com o gado dos países vizinhos. Pensa no aumento da carne. Pensa tornar-se vegetariana. O gosto da soja a desanima. Pondera e pensa optar por frutos do mar. De peixe também se vive, além de ser saudável! Lembra da mãe do amigo com o fêmur fraturado. Anota para comprar cápsulas de cálcio. Melhor sempre mesmo é a prevenção!  Outra prece. Agora, pela mãe do Zé. Imagina não ser a sua recuperação o pior, mas as doenças oportunistas que surgem pelo excesso de dias no leito hospitalar. Agenda rezar uma novena inteira em sua intenção. Oração nunca é demais. Sabe como é bom ter fé! O espelho mostra que os dias estão passando depressa demais.  As suas feições estão mais semelhantes a de uma mãe, que a da mulher que é. Pensa em cremes:  Anna Pegova, Lancôme Primordiale Optimun nuit, Avène Eluage Creme, Natura Chronos 45, Avon Renew... Começar a rir de si mesma por achar que cremes fazem milagre! De novo vê seu reflexo. E nota que alegria remoça. Concorda com a frase “rir é o melhor remédio”. Fica rindo, e percebe o poder anti-idade que o bom humor tem. Atende ao telefone. Fixa os olhos em algum ponto. Preocupa-se. Lembra do envelhecimento. Simula um riso. Desfaz a cara tensa. Pega o livro sobre o sofá. Lê duas ou três páginas. Pensa na recomendação do filho. Admite que o Diário de um banana é um livro muito divertido, até para quem já ultrapassou a barreira da juventude! Os problemas ficam dentro do livro, e o sorriso se espalha pela casa. Percebe que faltam ingredientes para a torta de domingo. Confere a receita. Anota para comprar depois do expediente. Separa uma roupa. Espia pela janela o tempo. Vê que o Sol não veio. Imagina-o dormindo no colchão azul do céu coberto com cinzas nuvens. Separa outra roupa. O tempo requer vestes mais quentes. Pega o batom, a base, e o lápis, presente da amiga. Contorna os olhos. Passa a sombra lilás. Afinal, é primavera! Usa o perfume de baunilha, e fecha os olhos para perceber melhor o seu aroma. Dá bom dia para a cachorra que lhe faz festa. Promete-lhe não demorar mais do que o tempo de atendimento com seus pacientes, mesmo sabendo que a volta para casa nunca se deve marcar hora. A vida lá fora, com suas ofertas e atrações, seduzem o tempo, e normalmente prendem mais do que se deve. Pensa na segurança da casa. Confere portas e cadeados. Uma câmera daria mais proteção. Nada! Lembra de reportagem no condomínio cheio de equipamentos de segurança invadido por meliantes. Antes de sair, pede proteção aos céus, - toma conta do que é meu, Senhor-. Pensa na mãe, a saudade enche seu coração de colo materno, e quase chora. Pensa que irá visitá-la em breve. Lembra-se de que tristeza envelhece. Pensa em coisas bonitas e alegres. Pensa na risada da mãe e nas piadas do pai. Sorri largo. Abre o portão e vai. E pensa. Pensa. Pensa e pensa. Pensa que o que mais faz na vida é pensar. Mas que de pensar é que faz as coisas acontecerem. E sorri. Enquanto sorri, é jovem. E se jovem, não envelhece! E segue pensando e sorrindo. Pensa que nunca vai parar de pensar. Nem de sorrir! Uma rotina que promete seguir rigorosamente.