O BOLO
Houve um tempo em que o início do mês de outubro era vivido com ansiedade, não apenas pela expectativa do que se iria ganhar no Dia das Crianças, mas, também, pela proximidade do Dia do Professor.
Chegado o dia 12, nada de especial acontecia nas casas das crianças quase pobres como eu, que tinham de ver as outras andando em suas bicicletas ou brincando com suas novas bonecas. Era um dia a mais para brincar de “faz de conta” de que os caquinhos de louça eram vasilhas, de que os matinhos eram alimentos ou de que eu era professora e minhas amiguinhas eram as alunas.
Nos dias seguintes, nas escolas, autonomamente, os alunos se organizavam para fazer as festas para os mestres. Normalmente, decidia-se quem iria levar os refrigerantes, os salgadinhos, os docinhos, as pipocas e o bolo. Os mais espertos, com desculpas esfarrapadas, sempre escolhiam levar as coisas mais baratas, mas eram os primeiros a comer as coisas mais caras ou gostosas que os outros levavam.
Em 1968, na 1ª série ginasial do Colégio Estadual de Linhares (hoje “Emir de Macedo Gomes”), estudávamos eu e vários colegas como: a Euzi (Zizi) Coelho (minha primeira grande amiga em Linhares), a Kita, a Marinete Silvestre (ambas, hoje, são minhas colegas, professoras de Português), a Eliacir (sua irmã fez o meu primeiro uniforme escolar em Linhares), o Jáder Almeida (nós saíamos na porrada direto, dentro da sala de aula. Rs,rs,rs...), a Dirce, o Réuber Nascimento, o Rogério Calmon, a Ivanete, a Rosângela Favalessa, a Rita Ramos, a Juracy Padilha, a Vera (filha do dono do foto Gury), a saudosa Elzinha Lozer... e muito outros de quem eu certamente me lembraria dos nomes, caso ainda tivesse uma foto tirada no Dia do Professor daquele ano.
Uma semana antes, nós nos organizamos e decidimos que os meninos levariam uma caixa com 24 garrafinhas de refrigerantes (Pepsi e Mirinda, porque eram os mais baratos) e nós daríamos 03 dúzias de ovos, 01 pote de manteiga, 02 litros de leite, 04 quilos de açúcar “Pérola”, 02 abacaxis, 02 cocos, 01 lata de ameixas secas, 06 limões, 01 frasquinho de anilina azul e 08 caixinhas de “Santista”, mistura pronta para bolos. Nossa amiga Marinete ofereceu a sua casa e a si mesma para, com nossa ajuda, bater as massas, assá-las, montar e confeitar aquilo que seria nossa grande homenagem aos mestres.
Na véspera, à tarde, lá fomos nós, a pé (quase ninguém tinha bicicleta e a cidade não contava com serviços de ônibus) para o bairro Aviso, em frente ao Sesi, a casa de nossa amiga. Grupo reunido, fomos para a cozinha e dividimos as tarefas: um grupo faria os recheios, o outro (nele me incluíram) deveria abrir as caixinhas, rasgar sacolinhas das misturas, verter o leite sobre elas e, no braço (ninguém entre nós tinha batedeira), desempelotar a massa, untar os tabuleiros, levá-los ao forno e cuidar para não queimar.
Marinete, nossa “mestre cuca” supervisionava os dois grupos, enquanto cuidava de fazer a cobertura: claras, açúcar, limão e anilina. Nunca soube se ela era metida (como eu) a saber fazer as coisas sem saber, ou se, de fato, a temperatura do dia é que impediu que o glacê ficasse durinho. O “trem” ficou parecendo um... suspiro mole.
No dia 15, chegamos à nossa sala bem cedo para arrumar as cadeiras no fundo, abrir espaço, colocar uma toalha sobre a mesa dos professores, decorá-la com os refrigerantes (quentes) que os meninos levaram, pedir giz colorido e escrever na lousa verde: “Feliz Dia dos professores! Amamos vocês!”.
O bolo chegaria mais tarde, pois, afinal ele estava vindo de muito longe, do bairro Aviso! Isso não representava um grande problema, pois os professores, em via sacra, visitavam todas as salas, ouvindo as diversas homenagens e provando dos vários petiscos.
Enquanto esperávamos, ouvimos as músicas do Roberto Carlos em uma eletrola que alguém levara. O tempo foi passando, passando, passando... “O Inimitável” enjoou de cantar, Paulo Sérgio começou, cansou, Wanderley Cardoso e Jerry Adriani se esgoelaram... Os professores chegaram para a visita à nossa sala, mas....nada do bolo chegar.
Em dado momento, a porta se abriu e pensamos que era Seu Olímpio, nosso querido inspetor de ensino, para conosco ralhar pela altura do som, mas não era. Tchã, tchã, tchã... Marinete apareceu à porta tendo sobre a cabeça uma tábua e sobre ela o bolo decorado com “meleca” azul.
Sem que ninguém combinasse nada, os meninos avançaram sobre a cabeça da nossa amiga (talvez para comer o bolo com as mãos) e acabaram jogando-o no chão. Não me recordo do que aconteceu a seguir, se nós batemos nos meninos ou não... Contudo, em todos esses anos, em minha memória, ainda sou capaz de ver os rostos estupefatos e decepcionados das amigas “boleiras e doceiras”, olhando a nossa “obra de arte” esparramada no assoalho.
Análoga e curiosamente, essa imagem me vem à mente, instantaneamente, quando presencio ou sei de situações em que as pessoas batalham, insistem, querendo muito algo ou alguém (o bolo), mas quando as têm sob seus domínios, maltratam e desprezam, ou seja, as jogam ao chão.